Voltar, fechar a porta, repetir o ritual. Olhar a janela, constatar o que é igual, repetir tudo de novo, voltar ao que não se quer sentir, mas escarafunchar e remexer, exorcizar, reiterar, perder tudo e ficar na mesma, e abominar a existência e perguntar se é possível continuar a aguentar tudo o que se prefere omitir, destruir os fantasmas na cabeça e criar outros, e suportar o chão que treme, os edifícios que se desfazem com gente dentro, os espelhos partidos e os cacos pelo ar, o chão que se abre e engole o trabalho de anos, e fechar os olhos e abrir de novo e tentar em vão criar jardins do éden em sítios cinzentos, e sair pela rua, e abrir os braços e sentir que a única coisa que vale a pena é sentir a chuva a cair em cima. E voltar ao que se acha que, afinal, ainda é o que se pode ter - aquilo que se cria. Lá em cima da estante estão guardadas as fotos dos momentos que nunca vão chegar, as palavras que se escreveram para a altura que afinal não passa de um sonho, os próprios sonhos que já arrumámos na gaveta, e a caixa onde outrora bateu um coração, agora um vazio ensurdecedor. Talvez seja mais fácil se confiarmos no que temos por dentro. Mas no fim o que há é uma cambada de verbos infinitivos que não servem para absolutamente nada.
sábado, setembro 30, 2006
sexta-feira, setembro 29, 2006
Little do men perceive what solitude is, and how far it extendeth. For a crowd is not company, and faces are but a gallery of pictures, and talk but a tinkling cymbal, where there is no love.
Sir Francis Baconquinta-feira, setembro 28, 2006
quarta-feira, setembro 20, 2006
Dia lá fora, sempre, a passar as horas e os minutos, os dias. A merda do tempo, rumino eu e não penso mais nisso. Saio da cama, sempre o mesmo baralho de novo servido no pano verde perante os mesmos intervenientes, o jogo está viciado, expludo eu, há só cinquenta e uma cartas neste baralho, desespero eu, mas os convivas permanecem com a mesma expressão e riem-se das baboseiras que ouvem sair da minha boca. Perco vazas, perco o que levava e até mais. Saio da mesa encolhido e envergonhado, quem me mandou a mim, rumino eu, não penses mais nisso, diz o arlequim que surge da esquina e espeto-lhe um murro no focinho, nunca dei um murro a ninguém, subo uma montanha, a mesma, contemplo a vista, a mesma, rumino sobre tudo o que é o mesmo e páro a trautear em simultâneo as dez mil canções que tocam em uníssono. Não espero já quem me diga sequer o que hei de ouvir a seguir. Não espero absolutamente nada. Muitos dizem que é errado, outros dizem que não há nada a fazer, eu digo que não me interessa. Sento-me na beira de um abismo com as pernas penduradas sobre o vazio e não penso mais nisso. Só agora é que reparo que é de noite. A cidade liga as luzes e os carros prosseguem. O som indefinido e soturno preenche o que faltava. Alguém diz - "Então e o instinto?" Devem estar a gozar comigo.
sexta-feira, setembro 01, 2006
Acorda-se por fim, levanta-se, caminha-se, o tempo, o relógio, o ponteiro que eu sou, e rodo, as horas passam e ao fim do dia desligamos as imagens e os painéis que nos rodeiam, pegamos no telecomando do mundo e carregamos no botão de pausa, e um silêncio do tamanho dos séculos invade tudo. Que silêncio. A paz.
E então recuar, recuar, recuar, e passa-se por todos os estágios, todos os estados, todas as imagens, tudo em definitivo, as imagens todas que se viram num segundo, todas as sensações e de repente a verdade debruça-se sobre o vazio como um piano de cauda desgovernado. Viaja-se de foguetão nos sítios que banimos há tão pouco tempo, diz-se olá às coisas que dissemos que não íamos encontrar de novo, e rodopiar, deixar o corpo embater nas paredes da cápsula. Como uma ginástica inconsciente que se faz por mera escolha. A opção de fazer da vida uma montanha russa nunca se faz de ânimo leve, mas nada se assemelha a fugir um dia para procurar o sítio onde as estrelas dormem.
Rádio Macau - A Vida Num Só Dia