quinta-feira, fevereiro 24, 2005



Que escrever hoje, pensou, enquanto se rendia ao isolado batimento do raciocínio. Queria escrever canções mudas, daquelas que se lêem, mas não conseguia. Faltava-lhe a dedicatória. Fechou os olhos e tentou perceber se as palavras vinham. Escuridão. Começava a entrar em desespero, algo dentro de si gritava por uma redenção mas ela não tinha forma verbal, não tinha adjectivo, não tinha linguagem suficiente para que a escolhesse como depositária dos seus cinco minutos de escrita. Abriu o olhar para o brilho baço da sala. E, como por magia, as palavras estavam à sua frente. Quem as teria produzido? O ligeiro sussurrar que sentiu ao lado do seu ouvido? As mãos leves de alguém que não tinha e que quisera ali para o inspirar? Estava completamente só. Mas as palavras estavam lá, disso já não havia dúvida. Decidiu não pensar, e guardar no seu coração a identidade de quem as escrevera, e não pensou sequer se a havia de a querer encontrar. Talvez estivesse ali, atrás dele, talvez tivesse fugido sem um gesto, talvez se tivesse materializado à cabeceira de qualquer outro desinspirado buscador. Não quis virar a cabeça, não quis mexer um músculo. Não havia explicação para o que ali acontecera, mas ainda bem. Naquele momento era cego, frio, imóvel e estático, e o pior de tudo é que se estava a começar a habituar. Quem sabe da próxima, ela aparecesse à sua frente, lhe sorrisse e deixasse que finalmente ele lhe pudesse ver os olhos...

terça-feira, fevereiro 22, 2005



Lembrou-se da foto que uma rapariga que conheceu em tempos tinha tirado. Era um céu azul. Mas era o céu da terra onde ela nasceu. E porque não? Não era isto que faltava mais do que tudo o resto? Não era esta pobreza pior do que todas as outras? Raios partam, apetecia-lhe de vez em quando que não houvesse guarda-chuvas, que não houvesse aquecimento, que não houvesse carros, que desaparecessem os sofás confortáveis e as paredes que o desligavam de tudo. Impossível, claro, ele estava já demasiado imerso. Sentou-se ao piano e tocou uma peça complexa. Era feita de silêncio. Fingiu que comia o jantar e quando se deitou na cama fechou os olhos. Mas durante toda a noite manteve-se desperto.

Apenas para pensar em absolutamente nada.

segunda-feira, fevereiro 21, 2005



De repente acordou e viu personagens que o assombravam desaparecidas como por magia... viu-as emocionadas acenando adeus, batendo com a porta, e também algumas sendo elas próprias: burras ao ponto de julgarem que continuam a viver o mesmo sonho alucinogénico que julgaram viver este tempo todo... julgava ainda estar a ver coisas, mas de facto tinham desaparecido... mas que novas personagens viriam agora perturbar-lhe o sono?

O futuro só ao futuro pertencia. Ele não se queria perturbar de novo com isso.

quarta-feira, fevereiro 16, 2005



Quando a cabeça não tem juízo... não era o corpo que pagava.

Era o tempo. E então se não tinha coisas para fazer. Sentiu que nos primeiros meses do ano se jogava o futuro de vários anos, sentia que pela primeira vez conseguia ter um contacto próximo com tanta coisa que planeara, com tanta coisa que quisera preparar... e que agora se começava a desdobrar, a dizer que fazia sentido. Tanta coisa, que ele sorria ao ter de ficar em casa para estudar texto, ao ter de tomar notas de tudo o que tinha para fazer, de todas aquelas coisas que tinha necessariamente adiado, mas pela melhor razão de todas... o facto de não ter tempo para as fazer! Se outros dias mais sombrios o esperavam, este não era um deles. Por vezes um sorriso também existia, mesmo quando havia quem lho quisesse roubar...

sábado, fevereiro 12, 2005



Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio
Degrau
Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio
Buraco
Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio Equilíbrio
Queda
Queda
Queda
Queda

Acorda, bolas, não é este o teu filme.

terça-feira, fevereiro 08, 2005



Tarde de sol. Feriado. Tirara o dia para resolver algo que se arrastava há meses. Isso implicava ficar em casa à espera, desprover-se de programa, esperar apenas. Passou a hora combinada, e recebeu uma mensagem, afinal mais duas horas de espera. Passaram. Mais duas horas, segundo a mensagem que recebera entretanto. Estava disposto a esperar. Até ao dia seguinte. No entretanto, preenchia-se de músicas avulsas, repousado sobre a cadeira. Shostakovich, para matar o tempo. Até quando é que tinha de esperar, pensou ele. Não havia sinais de vida. Ligou-se às pessoas que conhecia, do outro lado da internet. Perguntava-lhes se por lá andavam. Não respondiam. Não falava há umas boas duas horas, e quando falara fora para saber se ainda tinha voz. Esperava, e chegava à conclusão que isso era o que a vida lhe tinha ensinado a fazer melhor. Esperava, calado, mudo, rodeado de um piano frenético que coloria o fim de tarde, e tentava disfarçar a sensação nítida de que o dia tinha sido deitado à rua. Rebobinava, sem reparar, o quotidiano que abominara e que tentar enterrar no passado. Impossível. Aquela era a sua realidade. Por mais que fugisse dela, aquela seria sempre a sua realidade. Dissecou em todos os ângulos a palavra "esperar", mas o resultado foi sempre o mesmo: uma imagem de si próprio, avançando às cegas num corredor avermelhado, tão lentamente, que cada dia era para ele um milímetro...
Foi ver o número que lhe mandara as mensagens. Era o seu próprio número. Lá fora era já de noite.

domingo, fevereiro 06, 2005



A gripe, palavra definida pelo dicionário semanal, palavra omnipresente em todos, entre lenços de papel amarrotados, entre medicamentos amontoados numa amálgama de caixas de cartão, posologias, advertências, papel de alumínio, e o corpo deitado em busca de uma redenção...

Mas não, não esteve de cama. Toda a gente do trabalho já tinha faltado pelo menos um dia, mas ele lá continuava, e não dava uma falta desde o início. Muitos diziam, ao verem o seu nariz vermelho a pingar e a tosse convulsa: "vais ficar de cama, prepara-te, é assim que começa". Mas não, lá continuava, e quem o visse uns dias depois até o achava estranhamente recuperado.

Mas a maleita roubou-lhe o olfacto, já lá ia uma semana, e por conseguinte o paladar. Passou tudo a saber ao mesmo, e os diferentes perfumes dos olhos que se cruzavam com ele não se faziam sentir. Ao fechar os olhos, o resultado era estranhamente... limpo, porque até um camião movido a nuvens de chumbo de gasóleo lhe ia parecer igual ao perfume tão sedutor da rapariga que lia um livro ao lado dele no autocarro... Ao fechar os olhos podia estar no céu ou no inferno, porque era tudo o mesmo. Só o cheiro mudava.
Tomou duche, pensando quando é que poderia voltar a saborear o que quer que fosse. E o cheiro intenso do gel de banho despontou, tímido, muito longínquo. Sorriu, já não faltava muito.

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