Movimenta-se pela rua estreita e calma, onde só o zumbido da televisão da vizinha se intromete. Os edifícios equilibram-se, periclitantes, lá em cima parecem tocar-se, de tal forma estão em desequilíbrio. Mas hoje saiu para a rua. Uma réstia de céu azul entre dois algerozes, um gato que flutua de um telhado para outro, o sorriso do homem que segura uma rosa na esquina (já o faz há anos). A música interrompe o momento, e um sol descendente aterra pelo corredor da viela. O ritmo sobe, um suspiro de mulher reverberante preenche o ritmo que se adivinha, e a luz ofusca-a. Pé ante pé adivinha a cadência, passo a passo o seu corpo se move, e deixa -se embalar pelas mãos gigantescas e delicadas do momento. Rodopia sobre si mesma e desce a calçada, banhada pelo sol, deixando-a viajar na sua dança envolvente. Dá a mão à liberdade e começa a dançar. Desce as escadinhas tortas sob o olhar suspeito de duas mulheres à janela, deslumbra, banhada de sol, o miúdo que joga à bola, cria-lhe na mente a imagem inesquecível da saia avermelhada e dos cabelos soltos flutuando sob o tom utópico do dia, e por onde passa a magia rodeia-a, as luzes das ruas acendem-se, uma festa desponta e um coração bate mais depressa. Depois, naturalmente, sobe muito alto, bem alto, trepa para o telhado, passa a mão entre dois passos no dorso do gato negro que a observa, e persiste, toda ela uma enorme silhueta sobre os telhados das ruas apertadas, o rio ao fundo e a forma inconfundível do seu corpo que balouça. Persiste. Dança sem se cansar. O sol coloca-se em frente dela, tudo se torna vermelho. As pessoas fitam-na de longe. Lentamente a cidade pára para a observar. O pulsar fascinado e a música que se inculca nos corações aos seus pés, tudo lhe pertence. Os seus olhos (um mistério) semicerram-se, e lentamente, a cada minuto que passa, a cada luz que se desvanece no horizonte azul-escuro de um dia de Verão que se despede, os seus pés e as suas mãos despedem-se também. Apenas fecha os olhos e o seu corpo se imobiliza quando todos à sua volta ostentam um sorriso beato que não conseguem explicar. Quando todos sabem já o que é amar algo que não compreendem.
Agacha-se então sobre a cidade. Preserva o silêncio. Fita todas as luzes sem escolher nenhuma. Desfaz a máscara, e o sorriso. Respira fundo tentando dar algo num coração que de outra forma persiste em não existir. Suspira. Quem a fará sonhar?
A pairar rápido e luzidio sobre o tempo, sem tempo, sem momento, sem memória, viajante instantâneo, ninguém vê, só se passa sem que se dê por isso, não interessa, não é essa a ideia, é passar ao lado, e chegar ao outro lado, apesar de tudo, é preciso sempre outra coisa qualquer, e assim deslizar por entre as rugosidades, aproveitar o momento recente em que percebe que não é preciso fechar as portas, o momento em que se percebe que se pode ser o que se quiser porque já passou muito tempo a ser o que os outros queriam, o tempo para interiorizar cada vez mais que só se pode Ser, como tudo o que não se pôde até agora, ignorar as vozes que há dentro, ignorá-las e destruí-las quando começam a insistir e seguir em frente porque a cada passo que se dá a estrada atrás desfaz-se em bocados dispersos, que eram pedaços ínfimos e formaram-se apenas no segundo em que o pé assentou no chão. O passado não interessa, o próprio minuto que veio antes dele também não, o pesadelo que ainda insiste em perseguir quem olha para ele também não interessa. Apenas fugir para a frente, é a única via, mesmo que o que se veja à volta e à distância e por dentro não interesse a ninguém.
Porque, apesar de tê-lo desprezado durante muito tempo, o singelo momento presente - à primeira vista tão ínfimo em relação ao passado e ao futuro - é a única coisa que existe neste momento. Neste preciso momento. E existe-o para tudo. Tudo. Para passar. Para pairar. Para sair. Para correr. Para voar. Para cair. Para saber. Para aprender. E também para te perder.
Estátua de gelo Sabe que é imóvel Sabe que não se pode mexer Por isso se fez de gelo Resta-lhe esperar Saber se por baixo do gelo há vida Saber se quando o sol brilhar O mundo se abre Ele continua na mesma Ou tudo acaba Esperar saber se se desfaz Se a sua vida é apenas ser de gelo E nada mais Porque agora Agora neste momento Não sabe o que é realmente Apenas sabe que é de gelo E que não se pode mexer
Sono Olhos pequenos A luz ténue ofusca O som longínquo ensurdece Os pensamentos Nadam à superfície Mas escrevo E penso pouco, sinto tão pouco Deixo correr pelos dedos O sorriso secreto Que vejo Sempre Como seria ao pôr do sol Onde seria o lugar especial O que diriam os olhos Qual o som desse suspiro O toque dos dedos O sabor da paz
Só mais tarde Quando o peito arder Quando o mundo se abrir E tudo mudar Mais tarde Tão tarde
O tremelicar do seu corpo e das coisas dentro do espaço apertado onde se comprimia permitiam chegar-lhe à conclusão que a marcha abrandava, que a viagem mudava de forma, que algo lá fora se alterava aos poucos. Deixara de querer saber para onde ia. O espaço onde outrora estava uma enorme e transparente janela para as estrelas e os planetas fora substituído e tapado por fotografias amarelas de um passado longínquo que se habituou a ver definhar e tornar-se cada vez mais distante. Ele próprio se tornara distante. Escapara num veículo que ele próprio inventou, não porque um dia tenha tido a ideia brilhante de o construir, mas porque precisava terminantemente de perceber onde ficavam as respostas. Num dia como outro qualquer, quando o seu mundo já se desmoronava numa convulsão do tamanho do marasmo, pôs-se em marcha, em direcção a outras cores, outros planetas, outras imagens. Mas agora permanecia sentado com os joelhos contra o peito no centro daquele lugar já comido pelo tempo e pelo hábito. À volta as paredes outrora novinhas em folha tinham-se tornado testemunho dos dias que ali passara, crivadas em todos os recantos de pequenos riscos, que o ajudavam a perceber há quantos anos fugira sem destino. Sabia que fora ainda há mais tempo que deixara de se importar com isso. Agora tudo estremecia. Os objectos à sua volta mexiam-se pela primeira vez numa eternidade. Partículas de poeira erguiam-se num bailado com a luz ofuscante que banhava os buracos cada vez mais numerosos nas paredes da sua redoma (contudo) tão frágil. As fotografias da janela começavam a cair uma por uma. O brilho tornava-se assustador, invasivo. Mortal. A última imagem que restava pendurada à janela, a mais recente de todas, caiu por fim. E ficou apenas a luz. A luz avassaladora. A luz que lhe entrava directamente no corpo, que lhe rodopiava pelos confins da mente, que o erguia do chão e lhe fazia esticar os braços numa demoníaca pose de quem é possuído. Percebeu que algo deixaria de viver naquele momento. Restava-lhe saber se ele ou se tudo o resto.