segunda-feira, dezembro 19, 2005

Esperava-a, sentado naquele espaço familiar, sítio tão estranho para esperar alguém: dentro de um carro num parque de estacionamento. O encontro parecia furtivo, e não o era? Permaneceu, aguardando, o carro virado para uma parede, e ele de olhos fixos em frente, para poder pensar no mínimo possível. Porque é que vim, pensa ele, e suspira. As repetidas ideias de que, por algum destino retorcido, ele havia sempre de estar à espera de alguém, foram imediatamente pontapeadas para um recanto do inconsciente. E deu por si numa paz absoluta. O mundo podia acabar naquele momento, uma terrível dor podia assolá-lo. Que assim fosse. Sabia que qualquer realidade que acontecesse era a única, e bem real. No mundo dele tinham deixado de existir os "ses". Era a única maneira de se proteger. De tudo. ela havia de aparecer, sabia-o. Entrava no carro e dizia-lhe olá. Ele seguia caminho, com ela ao lado. Perguntava-lhe onde iam, e ela, comodamente, deixava-o decidir. Iam almoçar, ou lá o que era. Mas nunca iam falar do que realmente interessava. Por percorrer estavam demasiadas camadas de confiança, de intimidade, níveis demasiado perigosos para ela, demasiado abstractos para ele. Pensava, enquanto entaramelava com ela um diálogo que de tão banal poderia conduzir-se a si mesmo, era o problema dele nunca deixava de pensar. E desta vez pensava em todos os porquês, e o porquê das razões porque tinha de os afastar. Porque é que vim, remoeu ele de si para si. E gostaste do filme, perguntou ela, Mais ou menos, respondeu ele, Porquê? Hesitou durante longos milésimos de segundo. Ela ia encolher os ombros mais uma vez perante a conversa dele. Por isso ele não pôde deixar de o fazer. Não me apetece gastar o meu tempo a dizer-te como me sinto frio perante tudo o que me rodeia, e como aquele filme me passou completamente ao lado. Sei que para ti é igual. Já tentei fazer-te ver algumas das coisas que me atormentam por dentro, mas tu ris-te. Por isso à tua pergunta "porquê?", eu respondo "porque sim". E já agora "e porque não?". O silêncio estendeu-se. Agora ele não pisava o território cauteloso e confortável. Ela sabia-o. E ele esperava a reacção dela. O encolher dos ombros do costume. Eu sei que não te preocupas, mas não te preocupes comigo. O que eu julgava que sentia por ti já foi identificado, retirado e destruído. Podes tratar-me como qualquer outro. Quem perde sou eu, mas isso já não me importa. Até me faz mais forte. Mas tens de perceber que a única maneira de eu me proteger de ti é proteger-me de tudo. Até de sentimentos que apareçam em filmes. Ela manteve-se imóvel. Ambos sabiam que aquela conversa teria lugar, mais cedo ou mais tarde. Mas já nada o surpreendia. O mundo podia acabar naquele momento.

terça-feira, dezembro 06, 2005

sábado, dezembro 03, 2005

Cansado, sem conhecer o sono há dias, há finalmente algo nele que fraqueja. Não parou durante anos, procurando conhecer o outro lado de tudo, procurando coleccionar todo o género de experiências, e quando o conseguia, procurava sempre mais. "E se eu morresse amanhã? Já valia a pena?", feria ininterruptamente a voz a gritar dentro dele. Essa pergunta retórica cuja resposta ele nunca poderia obter a não ser no fim de tudo. E por isso expirava, encostado à parede, inalando lentamente o fumo do cigarro e contemplando as paredes que construía com as próprias mãos feridas. Esgotado. Exausto. Mas levantava-se, ainda. E, com a força de quem acorda pela primeira vez, deitou mãos à obra.


Foto de Fernando Gomes

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