sexta-feira, junho 30, 2006

Ela fica na escuridão. Eu levanto-me, subo a escadas, fecho a porta à chave atrás de mim e sento-me sobre as telhas. Contemplo as estrelas, está quase na hora. Não se ouve mais nada. Talvez o mar lá bem ao fundo. Há muita coisa que se consegue ouvir daqui, e que na verdade não está lá. Permaneço, deitado. Uma por uma, elas começam a tocar. Repetem o seu padrão, milenar, indivisível, que me levanta do chão e me faz querer tocá-las. Escorrego lentamente até ao beiral e as minhas pernas pendem sobre o abismo. Não me mexo. Deixo-me cair. Quando finalmente flutuo no ar, deixo o vento decidir. Sou levado por continentes sem nunca tocar o chão, passo em frente a janelas várias, cada uma com uma história, sobrevoo florestas e oceanos, continuo e finalmente toco o chão sobre um local de festa em que a música é da cor do desejo, em que os corpos se movem em câmara lenta. Já estive aqui, penso eu, a amálgama de pensamentos esfarrapados prega-me outra partida, e só penso em lábios que sorriem, que esquecem o contexto, sorriem apenas. E então tudo se cala. Fico suspenso em gelo, sem propósito, sem raciocínio. Ao meu lado, como companhia na travessia dos mil desertos que me rodeiam, uma estupidez monstruosa, aquela sobre a qual assenta tudo aquilo que me guia. Só eu e ela, respirando, tomando-me nos seus braços, a tentar fazer-me esquecer que não há razões, não há motivos, há uma idiota e doentia casca que se encarquilha, quando por dentro há salões limpos e decorados para celebrações que nunca virão. De novo o mundo a andar a espaços para trás e para diante, a verdade que tudo destrói a repetir-se, mesmo quando se sabe que isso seria impossível. Deixei de querer perceber. O que importa é aquilo que sou no preciso momento em que tudo rodopia, tudo fica branco. Em que o pulsar se apaga, se perde, se definha. Em menos de uma fracção de segundo, lembro-me de tudo o que se prepara para deixar de existir. Talvez, se eu não desistir, essas coisas continuem. Luto. Os pés e as mãos apertam-se com uma força que não é a minha. Que ironia, penso eu, vou-me afogar em mim mesmo no meio do deserto. Talvez, se eu


Foto de Claire Lunar


quarta-feira, junho 28, 2006

Para o meu caro amigo



Por muitos e bons!

quinta-feira, junho 15, 2006

Quatro horas. Dezasseis minutos. 192 posts. A noite arrasta-se. Persiste. Apagam-se linhas. Escrevem-se outras por cima. Lá fora já não se ouve o trovejar. Só o nosso. Escuridão. A música repetida vezes sem conta, sempre diferente. O pulsar. O balanço. Respiro. Respiras. Persisto. Círculos pelas paredes do quarto. Viagens intermináveis por imagens de súbito esquecidas, cobertas de um pano branco como os móveis velhos. Mais linhas que se apagam. Calo-me. Não te aborreço. Continuo. Divago. Troco-me e perco-me no que ia dizer. Solto fumo das narinas e faço um desenho. Atiro uma moeda ao ar, desta vez ela cai do outro lado. É a primeira vez. Contemplo-te, adormecida. Continuas deitada. Imóvel. Calo-me. Acendes uma vela. Treme um pretexto de luz. Reinventam-se as imagens. Amanhã é o mesmo. O céu pesa. Os pés movem-se mas não saímos do sítio. A cidade descende numa espiral em vertigem. Damos as mãos. Ninguém nos avisou. Queda livre, tristes eles, pobres, tão jovens que eram. Desgoverno-te. Desvias-me. Tapas-me os olhos com uma venda. Vamos fugir, penso eu, Fica, dizes tu, Melhor calar-me, digo eu. Indagas se há algo por dentro. Pela primeira vez não respondo. Não preciso. É tão bom omitir o que se pode dizer. Encolhes os ombros. Aproximas-me e respiras fundo. Para variar, não sinto nada. Quatro horas. Trinta e dois minutos. 193 posts.

sábado, junho 03, 2006



Make tomorrow come I think it's too late...


DJ Shadow - Six Days
No caderno azul, as histórias.

O tolo que sorria enquanto se afundava na areia movediça.
A ferida profunda que sangrava
ad aeternum ao som de harpas.
A escada que olhos de anjo contemplavam sem saberem que era uma pintura na parede.
A morte vestida de flores a tentar redimir-se do trabalho de séculos.
O mundo de formas abstractas a fingir que ainda é redondo.
O velho que casou com o retrato de uma princesa.
O coração que não compreendia como era possível tanta tristeza.
O sorriso que não acabava, todo ele fora apenas fortuna e graça.
Os convidados à espera de alguém que nunca mais atravessava a porta.
O mundo inesgotável e inexplorado de portas escancaradas onde ninguém queria entrar.
O grito permanente que se tornara mudo a todos menos a ele.

O escritor no escuro a tentar criar algo tão real que lhe pudesse tocar.

quinta-feira, junho 01, 2006

Que fazer que fazer quando as coisas se viram ao contrário e fugazmente oscilamos à velocidade da luz, desde cavalgar a crista das ondas até esmurrar as paredes de betão da gaiola como um pássaro decrépito, que fazer com um livro de instruções ao qual faltam páginas procurando comunicar com uma realidade que se exprime numa língua que não é a nossa, que fazer quando deixamos de perceber se vale a pena pensar nisso que fazer quando se sente que já não nos cabe a nós fazer o que quer que seja o desespero afoga a vontade, a tristeza toma conta do mundo de horizontes infinitos que víamos do alto das colinas e cai a noite e no seu silêncio nos aconchegamos sozinhos num canto do espaço com frio e com medo mas sempre sem mais ninguém, sempre apenas com um espelho a toda a volta, de súbito centenas de olhos a olharem-me de volta, e o frio gélido que ataca os pés e então tudo é breu, tudo é mudo, tudo é triste, que fazer senão já não esperar nada, não poder prever nada, não poder contar com ninguém e então, nús, destaparmo-nos do cobertor, inspirarmos fundo a luz invisível das noites e, sem que mais ninguém nos possa valer, partirmos para sempre...


Foto de Alexandre Passos de Almeida

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