terça-feira, fevereiro 28, 2006

Manhã em câmara lenta, a mente a rebobinar sem sucesso a melhor parte de um sonho que lhe escapou das mãos na pior altura. Ergue-se do chão onde passou a noite e espreita pela janela. Vê-se a si próprio na varanda, espreguiçando-se lentamente, pouco a pouco a deixar o dia entrar. Perde os olhos na estrada lá em baixo, onde caminha em silêncio. Ainda não emitiu um som. Não é necessário. Em minutos percorre a distância que o separa da realidade, a cada passo a paisagem muda e veste-o com as cores forçadas do quotidiano. Chega cedo demais. Entra no café e esquece-se imediatamente do que pediu. Ao sentar-se sob as luzes de néon, está já noutro lugar do mundo. Procura sonhar acordado, procurar criar realidades paralelas, procura fazer da sua existência um filme que se move de trás para a frente sem no entanto cumprir regras de qualquer espécie. Deixa-se imiscuir nos sons do sítio tão calmo que inventou para ele próprio. Basta isso. Queria tanta coisa, mas isso é tão pouco. Para existir, primeiro precisa de Ser. Mas isso é tão difícil...

E, sem mais, quando a sua caneta pousa no papel que tem à frente pousado na mesa, a película pega fogo e o seu gesto imortaliza-se durante segundos para em seguida desaparecer em chamas. O público fica sem saber o final.


Foto de Maria Camomila

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Agarras-te às horas em que o tempo não passou
Mergulhas nas cores que a loucura te emprestou
E quando te vês para lá do espelho
Encontras a solidão

Descobres o mundo de quem tem pouco a perder
E sobes às estrelas que ontem não podias ver
E perdes o medo de estar só
No meio da multidão

Tradições
Atrás de contradições
Fizeram-te abrir os olhos
Podes dizer: eu sou.


quinta-feira, fevereiro 23, 2006

E se um relâmpago que atravessou o espaço lhe desferisse de repente a estocada final? E se ele acha até boa ideia cair do precipício? E se de repente tudo ruir mas ele não quiser saber? E se as montanhas e os abismos se juntarem num coro uníssono que lhe explode o peito e ele vacilar ao de leve como a negar que por dentro se desfez em mil pedaços? E se ele acorda finalmente de um pesadelo e constata que esse despertar também é um sonho e que até à realidade há que morrer e renascer mais vezes do que ele sabe contar? E se tudo à sua volta muda de noite para o dia mas na sua base tudo fica igual, como se o seu mundo fosse uma irónica realidade encenada? E se ele e apenas ele, sem mapa no centro de um continente de gelo, se atreve a procurar o caminho mesmo sabendo que o horizonte é uma parede de vidro? E se ele persiste quando devia desistir e desiste quando é cedo demais?


Foto de Nuno Veríssimo

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Tarde. O silêncio tão próprio daquele local. Materializado à margem de uma casa abandonada encontra-se um mar negro, escuro, profundo e impenetrável. Já foi azul, da cor do céu, há mil séculos atrás... sem que ninguém o pudesse explicar, começou a escurecer, a escurecer, até que a partir de certa altura nunca mais ninguém lhe conseguiu ver o fundo. Foram muitos os que se reuníram à sua volta, a tentar desesperadamente perceber como tal acontecera. Mas partiram, e agora, naquela tarde, paira uma paz para além dos tempos. Onde antes se colocaram questões resta um quase imperceptível ruído de vento. E o mar de trevas abana ao de leve, calmo... Até que do céu cai uma gota branca, brilhante, que se fosse maior ofuscaria quem dela se aproximasse. Corajosa, lança-se sem medo. Cai e mantém-se à superfície durante alguns segundos, como que tomando um último fôlego. Depois mergulha.

Ela sabe que não pode mudar a cor do mar, mas ao quebrar com o seu corpo alvo todo o negrume e toda a escuridão, fez com que aquele lugar nunca mais fosse o mesmo...


domingo, fevereiro 19, 2006

( )

Manhã
Semicerra os olhos
Ergue-se da cama
Nuvens na janela como em filmes de ficção
Veste-se
Os gestos pesam-lhe

Sai
Neve por vezes
Chuva sempre
Pés decididos
Passos em frente
Um final, um destino talvez
Senta-se no banco de jardim
Mãos gélidas que lhe doem

Labaredas de gelo
O rosto fustigado
Vento cortante
Gritos sibilantes do tempo
O corpo que arde
Os dedos que se imobilizam
Ele como uma estátua de pedra
Pouco a pouco
Pouco a pouco

Mas pára
Tudo pára
Os olhos e o coração
As mãos dela estão quentes


segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Escuridão O mesmo acto repetido Alguém só (sempre só, claro) em frente a um ecrã A música nos phones recheada de sons ambientes E ele ali Descarregando algo que nem ele sabe o que é Nem sabe por onde começar Não sabe se está triste Não sabe se está feliz Está igual a si próprio Um turbilhão de sentimentos que se traduz em sentimento nenhum Alguém que foi um dia apenas e só o coração Transformado num cubo microscópico que diminuiu de tamanho Apenas para saber que está vivo Não sabe sequer o que escrever Sente que as palavras lhe escapam dos dedos Tenta durante horas expressar o que quer que seja Libertar-se Voar mesmo sem asas Mas isso era outrora Isso era quando tinha tempo Isso era quando queria "sentir tudo de todas as maneiras" Agora é uma sombra Renega o seu passado Percebe porquê tanta dor Esquece o que ficou para trás Mas depois não tem nada a que se agarrar Vira-se para o futuro O futuro que ele desconhece Só amanhã saberá o que lhe está reservado Até lá só pode Esperar Esperar Esperar Esperar Esperar Esperar E abomina de repente todo e qualquer acto de esperança E abandona qualquer forma de fé E deixa ao acaso tudo o que lhe pode acontecer Deixou de desejar Deixou de amar Deixou de sentir É uma gota É uma tempestade Uns dias está contente Noutros está triste Hoje chora Só por dentro Há muito tempo que não sente as lágrimas no rosto Ficou sem força para o fazer Liga o piloto automático Descarrega o mais possível Apenas para ficar igual Igual Igual Igual E vai amanhã ver-se ao espelho e ver o mesmo E vai recitar esta realidade de trás para a frente E vai tentar de novo ser diferente E criar Porque perante um mundo que ele deixou de compreender Perante conceitos tão universais e para ele tão utópicos (Amor?) ri-se Ri-se a bandeiras despregadas Ri-se do sofrimento A dor entranhou-se Faz parte dele Faz parte da sua pose Molda-lhe os passos quando anda E os olhos quando vê Até um dia Que dia? O dia em que ele perceba que aquilo que ele procurou e que renegou (mas que deseja eternamente) nunca estará verdadeiramente ao seu alcance Havia tanto mais para dizer Há tanta coisa de que já não se lembra Há tantas realidades que lhe são tão próximas e que lhe parecem mais distantes e intocáveis que a textura dos sonhos Mas não há fim para o filme dele.

Desdobrar-se-ia em mil palavras para expressar tudo o que lhe arde por dentro. Mas quando tenta não lhe sai nem uma.



sábado, fevereiro 11, 2006

How happy is the blameless Vestal's lot!
The world forgetting, by the world forgot
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each pray'r accepted, and each wish resign'd.

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segunda-feira, fevereiro 06, 2006

A ouvir:

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(não cheguei a ver o filme)

sábado, fevereiro 04, 2006

O dia veio em que a noite se abateu. Uma noite infinda, gélida, que transformou os corações em uvas-passas e os olhos em esferas inexpressivas. Não suportava o barulho das luzes e saí da cidade. Percorri uma estrada infinita, longínqua, e abrandei apenas quando à minha volta repousavam as espessas árvores, os misteriosos recantos, os palacetes decrépitos e adormecidos a palpitarem de vidas passadas no seu interior. Um leve traço de nevoeiro envolvia o carro, uma escuridão esmagadora na qual me sentia confortável. Parei num local que não distinguia, e embrenhei-me para dentro das árvores. Não tinha medo de nada, mesmo não sabendo o que iria encontrar. Caminhei, sem parar, em direcção a outro local que não eu (sempre eu, sempre o mesmo). Uma rajada de vento que veio do nada envolveu-me de súbito. Não vacilei, fixo no mesmo ponto inexistente, não estremeci. Fui de novo fustigado por aquela ventania que rodopiava à minha volta num espaço de segundos, sobrenatural, propositada de alguma mente observadora. À terceira caí com a cara no chão e pensei desistir, voltar para trás. Respirei fundo, a cara na lama, o peito despedaçado. Mas uma mão de alguém que não via levantou-me e puxou-me de novo em direcção ao coração das trevas. Porque a resposta só chegaria quando eu a procurasse.


Foto de Miguel Ataíde

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