Death in Vegas - Natja
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Não é mais a mesma, a pessoa que acende com brusquidão o cigarro vespertino, contemplando o tom acre de outro dia que nasce ao mesmo tempo que larga o cigarro na mesa com o ímpeto de uma chicotada, e cria uma alga rodopiante de fumo que brota dos seus lábios e se desagrega pelos meandros da sua face. Não é mais a mesma, esta figura sentada, amolecida pela luz do ecrã, sentindo como uma dor de cabeça essencial à sua vida a obrigação de reclamar cada pedaço de dia como um momento de criação. Não é mais o mesmo, o vulto outrora na penumbra, que desliga a já inútil lâmpada de secretária que o alumiava, e que agora mede os passos das suas palavras e ouve o baque dos seus pensamentos. Não é mais o mesmo, aquele que bloqueia a espaços o discurso, à medida que nuvens ténues pendem dos céus, tímidos e obscuros desejos de chuva que não cai, que não mata de vez um verão que apenas existe no calendário. Este esboço de gente é, já, só e apenas Inverno. Para trás ficaram os pôres do sol, os brilhos leves do olhar e o sorriso beato e batido do momento fotográfico. Não é mais o mesmo, aquele que de maneira igual absorve a secular solidão momentânea, a aurora igual a todas as outras que viu, o sol preguiçoso que repete a rotina diária, espectáculo eterno de muito poucos, destino utópico de ninguém. E decide naquele momento que é apenas sombra. Percebe naquele momento que ergue paredes, maiores e mais fortes do que quaisquer outras que antes utilizara para barrar as entranhas das armadilhas do percurso. Agora assume-se como bloco negro, baço, imóvel. Mas as palavras, as imagens, os sons, os tactos e os cheiros do mundo não deixam de o percorrer por dentro, por cada meandro do seu corpo cansado. Então, sem aviso, a verdade esmagadora que atinge o verdadeiro propósito da armadura que criou. Apenas proteger o seu espaço da sua própria explosão.