terça-feira, agosto 31, 2004

Esta noite
Vi flores amarelas caindo em silêncio,
E cores de velas, trémulas ao sabor da brisa.

Vi olhos brilhantes,
Panos vermelhos esvoaçando sob o azul pálido,
E cítaras dedilhadas com a calma dos séculos.

Vi sorrisos e abraços,
Medos e fantasmas,
E no ar um leve aroma de corações despercebidos,
Aprendendo o doce soluçar do amor.


domingo, agosto 29, 2004

Era de manhã? Não, afinal tinha-se deixado adormecer até às duas e meia. Sol e calor. Espelhos de outros dias fazem as paredes das horas. Levanta-se, lentamente. Não sabe o que o destino lhe reserva. Prefere que assim seja. Vislumbra as peças que lhe formam o quotidiano. Deixa-as iniciarem o dia, como motores externos. A luz arde lá fora, onde tanta coisa se atropela. Mas é no silêncio do espaço que ele se deixa permanecer. Liga o som do computador, débil veículo de tantos actos de criação, base fulcral de tantos sonhos, de tanta ambição. Da sua vida. Sente-se fraco. O corpo lateja a cada momento, está pesado. Tosse timidamente. Coloca as mãos sobre as teclas. A sua cabeça rodopia. Há uma imensidão de pedaços para juntar, e os seus olhos sentem-se opacos perante a indecisão sobre que peça do puzzle usar para começar essa jornada épica. Como qualquer puzzle, decide juntar os contornos. O que está no meio, virá depois.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Pétalas caem, uma por uma, beijando o chão lentamente, doces toques silenciosos de um frio compasso. Descem numa cascata violeta, cada uma rodopiando à sua maneira, como improvisando dentro de uma coreografia previamente ensaiada. As mãos que as libertam são brancas, acutilantes, e puxam com dedicação cada um desses pedaços de flor, lançando-as em direcção a locais vistos apenas do alto de um fino caule, que sustentava aquela comunidade minúscula, imóvel e em paz consigo mesma. O espectáculo é comovente, e as pétalas choram de alegria. Diria mesmo que as ouço, sussurando umas às outras a alegria tão real, tão nova, tão eterna que sentem. Fazem a viagem das suas vidas.

Mas, entre esse sorriso sabem também que é a última.
E que a flor onde elas moraram não mais será flor.

segunda-feira, agosto 23, 2004

Tão minúsculo e delicado
este frágil pássaro
Caiu do ninho parece-me

Mas reparo como parece intacto
Fita-me fixamente
Sem mover um milímetro
Que quererá dizer
Não pode proferir palavras
Não pode sorrir.

Voa-me das mãos
Eterno de espanto
E serei eu cego
Serão os meus olhos

Ou vejo-o voar mais alto do que as estrelas?

domingo, agosto 22, 2004

Death in Vegas - Natja
...
Não é mais a mesma, a pessoa que acende com brusquidão o cigarro vespertino, contemplando o tom acre de outro dia que nasce ao mesmo tempo que larga o cigarro na mesa com o ímpeto de uma chicotada, e cria uma alga rodopiante de fumo que brota dos seus lábios e se desagrega pelos meandros da sua face. Não é mais a mesma, esta figura sentada, amolecida pela luz do ecrã, sentindo como uma dor de cabeça essencial à sua vida a obrigação de reclamar cada pedaço de dia como um momento de criação. Não é mais o mesmo, o vulto outrora na penumbra, que desliga a já inútil lâmpada de secretária que o alumiava, e que agora mede os passos das suas palavras e ouve o baque dos seus pensamentos. Não é mais o mesmo, aquele que bloqueia a espaços o discurso, à medida que nuvens ténues pendem dos céus, tímidos e obscuros desejos de chuva que não cai, que não mata de vez um verão que apenas existe no calendário. Este esboço de gente é, já, só e apenas Inverno. Para trás ficaram os pôres do sol, os brilhos leves do olhar e o sorriso beato e batido do momento fotográfico. Não é mais o mesmo, aquele que de maneira igual absorve a secular solidão momentânea, a aurora igual a todas as outras que viu, o sol preguiçoso que repete a rotina diária, espectáculo eterno de muito poucos, destino utópico de ninguém. E decide naquele momento que é apenas sombra. Percebe naquele momento que ergue paredes, maiores e mais fortes do que quaisquer outras que antes utilizara para barrar as entranhas das armadilhas do percurso. Agora assume-se como bloco negro, baço, imóvel. Mas as palavras, as imagens, os sons, os tactos e os cheiros do mundo não deixam de o percorrer por dentro, por cada meandro do seu corpo cansado. Então, sem aviso, a verdade esmagadora que atinge o verdadeiro propósito da armadura que criou. Apenas proteger o seu espaço da sua própria explosão.

sábado, agosto 21, 2004



Pairo e aterro num jardim. À sua frente, estende-se a cidade. Os carros flutuam em silêncio, e as pessoas bailam como fantasmas apaixonados, pelas vielas iluminadas do declive de que se faz a paisagem. Ouvem-se as ondas do rio, lá em baixo. Ao meu lado passa uma banda, tocando uma música invisível, flutuando a três centímetros do chão. As palmas que emanam das fachadas soam às avessas. O céu rende-se a um sol imóvel na linha do horizonte, que banha todos os centímetros, todas as paredes, todas as faces e todos os sorrisos com a luz impossível de um ocaso de amor. Percorro as artérias, apertadas como veias, do bairro onde moro, e um leve vento quente faz-me subir até ao telhado do meu prédio. Junto-me a um casal de gatos que contempla o rio, e a luz dourada do crepúsculo. No céu, por cima da minha cabeça, passa, a baixa altitude, um gigantesco navio onde homens e mulheres loucos de prazer entregam os seus corpos a uma viagem que decidiram que ia ser para sempre. Na ponte abandonada que atravessa o rio, lojas e esplanadas suspensas sobre o abismo vendem duas viagens alucinogénicas ao preço de uma. Desço finalmente as escadas. A luz vai-se desvanecendo. A vidraça da minha sala, que me entrega uma das paredes ao horizonte, reflecte a minha face na penumbra. Acendo uma vela, e sento-me na poltrona. Um ecrã desce e ocupa de súbito o local onde me encontro. Coloco um documentário sobre um gigantesco mamífero aquático, que se tenta juntar ao resto da família. A música, maior do que o mundo, envolve-me. E a visão avassaladora de titãs submarinos leva-me dali para longe, para outros mundos, outras visões. Sou enorme, profundo. Cada bocejo meu ressoa pelos leitos oceânicos, e cada lágrima que verto é uma utopia diluída em muitas mais. Sou do tamanho dos continentes, e a cada braçada percorro o mar inteiro. Mas quando acordo sou apenas um homem. Apenas um.

sexta-feira, agosto 20, 2004



O palco de um verão imaginado e jamais existente em qualquer possível futuro. As estrelas, partículas de magia que bailam quando ninguém olha para elas, são, naquele momento, a única presença desejada. Libertação. As roupas são deixadas no chão e o corpo mergulha. A suavidade do toque gélido do oceano em contacto com a pele tem travos de fascínio. Escuridão. Quanto tempo se aguenta debaixo de água? Imobilidade. Final à vista. Quanto tempo o corpo é capaz de se manter imóvel numa massa onde o calor é uma utopia? De súbito a leve música, e tochas ardendo sobre a praia. Uma luz laranja invadindo o local, o travo do sonho na totalidade do seu esplendor. No areal, o sorriso a quem toda a vida foi entregue. O corpo que sai de água e se move em câmara lenta. O beijo maior que as constelações, onde o filme acaba.

O regresso ao local, depois de um tempo que pareceram séculos. É o mesmo cenário, repisado e percorrido. Afinal nunca houve a noite, o sonho, o beijo e o sorriso. Tudo o que existe à volta é afinal o gasto palco de uma solidão desmesurada, que agora assiste a uma forma humana deitada na areia, banhando com as lágrimas o toque acre do solo, e o vento seco que fustiga tudo. As nuvens cobrem o céu. A tempestade abate-se. As roupas abatem-se. As ondas do mar explodem. Ele explode. O mar parte. Ele fica. O mundo vive. Ele morre.

quinta-feira, agosto 19, 2004



One breath away
from Mother Oceania
Your nimble feet make prints
in my sands

you have done
good for yourselves since
you left my wet embrace
and crawled ashore

Every Boy
Is a snake
Is a lily
Every pearl
is a lynx
is a girl

Sweet like harmony
made into flesh
Oh, you dance by my side
children sublime

you show me continents
I see the islands
you count the centuries
I blink my eyes

Hawks and Sparrows
race in my waters
stingrays are floating
across the sky

little ones
my sons and my daughters
Oh, your sweat is salty
I am why
I am why
I am why
Your sweat is salty
I am why
I am why
I am why.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Aqui

Chega-te a mim, pequena chama de vela tímida, aqui onde a luz é apenas um pormenor, onde o vento não tem espaço e onde as minhas mãos te protegerão até ao momento em que a vida as deixar de sustentar. Aconchega-te, traço de luminosidade que desponta, vislumbra o espaço à tua volta e descansa finalmente, deixar-te-ei dormir o sono de quem lutou como se lutasse contra uma miragem, contra as ilusões de que são feitos os sonhos. Fica, episódio brilhante que ilumina tudo em seu redor, de ti pedir-te-ei o calor, o alento, o sorriso, o sentido do momento e a redenção pelos anos aguardada. Parte agora, estrela cadente que me ofusca, deixar-me-ás porque já não há sentido em que permaneças comigo. O mundo lá fora é teu e fui apenas um dos teus degraus.

sexta-feira, agosto 13, 2004

Do hoje que será um dia ontem crio passos, movimentos mudos de animal astuto mas cego, e fundamento na minha própria teoria a lógica em que baseio todos os percursos. Circundo hipóteses, rastejando como se me escondesse de quem não me vê todavia, e persigo miragens, ténues pontes entre realidade e ficção. Tudo o que escrevo parecem gotas que caem num balde sem fundo, sem o tilintar que as torna vivas, que me fazem saber que elas atingiram um fim. Agora cintilo numa explosão abafada, riso triste de criança por dentro, asas de uma nave que não controlo. Penso na beleza escondida em cada momento, na hipótese de amanhã poder ser para sempre memória. Um rasgo de esperança invade-me, minúsculo, tímido, prestes a ser desintegrado pelas paredes desmoronantes que sobre ele se abatem. Mas até lá, apenas das minhas acções poderá vir tal pretexto para uma realização que me mude por dentro, que me faça sentir finalmente alguém, uma pessoa com um propósito, um caminhante com um destino. Mas apenas num futuro que não vislumbro, apenas numa saudade que não existe.

Free Blog Counter