sábado, abril 30, 2005

Desejo? É escrever quando não se sabe o que se escreve, é sentar-se na mesma cadeira e contemplar o mesmo horizonte, obtendo sempre a mesma resposta. É sair para a rua e chorar sob o sol abrasador, que aquece almas a metros de distância mas que apenas servem para gelar ainda mais o que vai por dentro. É olhar para o chão, ver o caminho percorrido, ver o que passou, o que não volta, e constatar o paralelo, o espelho (quão igual era aquele tempo que se insiste em rebobinar). Desejo é acordar e pensar o que se vai fazer para não se perder de novo mais um dia, lutar contra a prisão do casulo e perceber que o casulo já se transformou na nossa pele. É lutar contra as luas e contra as ondas e contra as labaredas e contra a estupidez e fazer disso algo de positivo. É esquecer tudo e partir para longe numa nuvem, é fechar os olhos e imaginar-se outro lugar, é ouvir uma canção suspirar-nos aos ouvidos palavras de amor e ser isso o que se tem mais próximo de uma confissão. É encarcerarmo-nos em vida, e suspirar porque aqueles ali ao fundo já não pensam nisso. É ter a noção de que se deseja, mas não o coração. É desejar coisa alguma, é apenas fingir que se deseja, é reinventar a nossa (sobre) vivência, é não saber se o passo que se dá a seguir é o do buraco, é um tactear suicida entre montanhas de espinhos, é ver a simplicidade do que nos rodeia e desejar ser-se mais simples. É fartar do mesmo registo, é não ter a força de fazer o que quer que seja, é tornar-se no que mais se abomina, e por fim explodir sem som, em pedaços microscópicos, adiando sem fim o dia em que se volta a juntar os fragmentos, em que se volta a colar a já gasta escultura. É reconstruir-se em lógicas, em razões, em pensamentos, em páginas de palavras rabiscadas que não querem dizer coisa nenhuma. É viver, é continuar, é perder, é sorrir palidamente, é agitar freneticamente o coração para lhe imprimir uma vida artificial, é esbugalhar os olhos perante o absurdo. É não esperar o que se vai desesperando.

quarta-feira, abril 27, 2005

Madrugada num recanto escondido da memória. Essa ainda pode sorrir com as recordações de outros tempos. Agora a manhã é azul. Só azul. Está na varanda, e debruça-se, espreguiçando-se, sobre a balaustrada. Por baixo dela um tapete de nuvens e o silêncio dos sítios onde ela nunca pôde entrar. Só àquela altitude se pode respirar para sempre. Quem a visse julgava-a feliz: longe do flash intermitente, longe do ruído abstracto, entre os braços dele, de quem não consegue ver a cara, só os braços.A manhã é azul, e percorre as paredes do seu quarto, desde o rendilhado do varandim, sobre o chão cor de creme, feito de formas meticulosamente abstractas, por cima da colcha vermelha da cama, ao longo da escrivaninha de madeira e das fotos a preto e branco de pessoas ausentes, por entre o corredor apertado e sobre a alcatifa esverdeada, através dos restos do jantar que repousam ainda na mesa (mais logo ela arruma), pelo suspiro que sai sem um som dos seus lábios, até aos seus olhos cansados que preparam lentamente o café. Um sorriso tímido na face, hoje é o dia, o dia em que vai almoçar com ele. Na rua, a conversa animada de buzinas rouba-lhe aos poucos a paciência. Mas o sorriso, como uma flor que desponta no solo negro de uma ilha feita de lava, abana, frágil, ao vento, à chuva. Persiste. Sente nitidamente que o homem ao seu lado a devora com os olhos. Ignora. As luzes da entrada do escritório vibram, falham. Ela sacode o guarda-chuva, já sob um abrigo, e recompõe a imagem (hoje é o dia em que ela vai almoçar com ele). Entra e cumprimenta quem vê. Não o vê. Mas ele anda por aí. Fixa-se no seu canto. Imagina o tempo a flutuar. Ele não aparece. Uma lágrima desce sobre a sua face. As luzes falham. Um brilho incolor rodeia-a. Todo o mundo parou. E ela começa a subir.Por baixo dela um tapete de nuvens. E o silêncio dos sítios onde ela nunca pôde entrar. E os braços dele à volta dela.

segunda-feira, abril 18, 2005

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Encontramo-nos em palco?

quarta-feira, abril 13, 2005

Andas à chuva entre milhões, mas só tu te molhas,
Corres para o último autocarro, onde os outros entraram a passo,
Estás prestes a cair para o lado, quando um mundo pulula ainda,
E não sentes a mínima dor quando as lágrimas são o pavimento dos dias.

Uns invejam-te, outros ignoram-te. Uns cobiçam-te, outros repelem-te.
Ninguém te conhece.



Não te preocupes. Talvez um dia as peças se juntem e formem um desenho.

segunda-feira, abril 11, 2005


No pardieiro de uma auto-estrada abandonada crianças cegas riem-se à gargalhada enquanto os seus pés deslizam por matéria desconhecida que brota de um camião tombado. Jogam pedras aos homens que estão cá em baixo, à sombra, usando como leques as mãos decepadas de manequins há muito desmontados. Ao fundo, por baixo do viaduto, dançam pares de pessoas vendadas, vestidas com fatos de gala amarelados. Ao terceiro andamento da valsa que surge de um altifalante outrora apenas acessível a milionários, os pares cravam-se mutuamente facas nas costas. São metódicos a fazê-lo, sempre no mesmo sítio, sempre com o mesmo vagar, como um metrónomo aguçado. O sol torra as temperaturas mais tresloucadas, enquanto que um ancião tenta recordar-se do último sonho que teve, da última noite em que conseguiu dormir. Paira um silêncio no ar mais adiante. Cães sem trela vagueiam, saltitando nas suas três patas, como uma matilha de cangurus trípedes. Lá em cima, no alto da montanha, ergue-se um edifício de vidro, cujo terraço é inacessível, pois fica no espaço e quem lá chegar não mais consegue conservar os pés no chão e irremediavelmente se perderá. Os que habitam dentro do edifício não ousam olhar pelas janelas e contemplar o panorama, mesmo os que habitam nos lugares mais cimeiros. Vivem com as mentes entregues a uma base de dados, e quando chegam às suas casas, andares abaixo, retiram com dor os sorrisos de plástico, indumentária obrigatória para poderem trabalhar. As máquinas embalam-nas como bébés prematuros, e fá-los adormecer com histórias, publicidade, e a ladainha repetida sobre o mundo tão especial onde elas são tão especiais. Em surdina, as máquinas injectam-lhes drogas duras, lentamente aceites pelo corpo, dissimuladas de produtos 100% naturais, produtos capazes de operar milagres, desde que haja fé. As almas dormem, finalmente. Mas sem sonhos.

domingo, abril 03, 2005

A ouvir... Talvin Singh - "Light"

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Era um lanço de escadas que ia dar a algo que podia ser muitas coisas. Os degraus eram em número incontável. A sua base e o seu percurso eram sempre escuros, mas pelos vários patamares que elas atravessavam, muitas pessoas ponderavam e vislumbravam, mas nunca percebiam. Muitos subiam essas escadas, alguns com grandes volumes às costas, outros carregados por irmãos. Mas eram às dezenas, centenas até, as pessoas que arfavam sentadas nos degraus. Até havia quem tivesse armado uma pequena casa. Quanto mais se subia mais se percebia que muitos ficavam por ali. Outros desfaleciam. Aqueles que tinham sido levados por irmãos estavam agora sozinhos, imóveis, mas sempre com os olhos no topo misterioso. É que aquele número incontável de degraus parecia maior quanto mais se subia. E os que podiam olhar para trás e tentar perceber a que altura se encontravam, percebiam que a escuridão que os rodeava tornava essa tarefa impossível. A promessa de algo desconhecido era razão suficiente para se continuar a subir, a subir sempre. Mesmo se uma surpresa amarga esperasse no topo. Mesmo se esse topo não existisse e se continuasse a subir para sempre, quem sabe. Uma coisa o caminho mostrava com uma clareza evidente: só quem tentava chegar lá acima é que podia sabê-lo. As multidões aninhadas na escuridão de quilómetros de distância já tinham desistido.

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