domingo, novembro 20, 2005

Depois falamos, lá disseste, o tempo não era o das confissões que rodeavam o mundo de pequenos focos de magia. Falamos sobre isso, mas o mais irónico é o facto de não haver muito para dizer, afinal as palavras utilizadas eram todas pequenos bocados de todas as outras palavras que vieram outrora, por isso já não há nada para dizer, basta-me rebobinar todos os passados e voltar a carregar no "play", quando julgava que nunca mais o ia fazer. Não há muito para dizer. Eu fico aqui no meu cantinho, a fingir que não te quero abraçar às escuras e beijar-te no rosto, e ficamos amigos. Para isso é que servem os paninhos quentes da benevolência. Entristece-me que a mesma besta que me persegue assuma várias formas, mas já deixei de tentar compreender. Agora as respostas já só virão no próximo capítulo.

terça-feira, novembro 08, 2005

Nevoeiro. Paz e ao longe um qualquer animal que subsiste na paisagem branca. Silêncio. Algo está prestes a desequilibrar-se. Pouco a pouco o som de tambores torna-se cada vez mais forte, mais presente. De início parece o estalar de uma guerra catastrófica no outro lado do mundo, mas está cada vez mais perto, cada vez mais compassado. Quatro homens com enormes tambores às costas erguem-se no horizonte, pontos castanhos na paisagem branca, perturbada por esta imagem solene de sacrifício. Mas isso é pouco. Atrás deles, caminhando ao ritmo dos enormes instrumentos de percussão surgem centenas, não, milhares de vultos, caminhando um passo a cada ribombar dos enormes tambores. As suas caras são de esforço. Mas isso não é o mais estranho. As suas caras são totalmente semelhantes. Todos eles têem uma e a mesma face. Todos eles são um só. Caminham, lentamente, puxando uma corda que se apoia nos seus ombros, uma corda que puxa algo que ainda não é visível, mas que cedo se adivinha e se impõe no seu séquito. Sobem a montanha íngreme, mas são tantos que conseguem deslocar aquele enorme peso pelo caminho tortuoso, e prosseguem até ao cume, onde outros milhares de figuras totalmente iguais os esperam, ao lado de um enorme pedestal onde um gigante das lendas se poderia sentar. Com um esforço monstruoso que ficaria registado nos livros de História (não fosse este um ritual efémero) erguem o peso para cima do pedestal, numa derradeira provação de tudo aquilo que uma vontade incontornável consegue tornar real. O ajuntamento de pessoas contempla, sob a luz de um sol de vários graus negativos, o seu legado: um cubo de gelo absurdamente gigante, que repousará sobre a plataforma até o sol e um possível calor o destruam. Não há caminho para lá chegar: quem o quiser ver terá de sofrer vários sacrifícios. Um dos homens à volta do estranho memorial, distinguível apenas pela expressão ligeiramente mais comovida, destapa uma placa na sua base:

"À grotesca loucura velada, à incapacidade de se achar o que se procura, a tudo aquilo quer e não se tem, a todo o nada que nos preenche, até ao dia em que tudo fizer sentido, e do gelo vier de novo a vida."


Foto de Luís Rocha

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