O relógio marcava 23:23, como já era habitual. Gostava de associar o evento regular com uma qualquer conjunção,dotada de significado. Mas provavelmente era só um acaso, como tudo o resto. Vislumbrou a carta que pousava no tablier, e recostou-se. Contemplou a cidade adormecida na sua pulsante e contínua condolência, e releu na memória as linhas:
É a última vez que avanço para tentar alinhavar explicações, diálogos, o que quer que seja. Já dei o braço a torcer muitas vezes. Não gosto de fazer inimigos ou guardar rancores, e sabes bem que fiz tudo ao meu alcance para que isso não acontecesse. Mas passaste das marcas. Não imaginei que chegássemos a este ponto, no entanto há sempre de haver realidades que ultrapassem as piores ficções. Custa-me crer que ouvi as palavras que tão tristemente me dedicaste. Ainda custa mais saber que eram meros exageros, mentiras, tristes farrapos de algo maior que desconheço, aplicados sob a capa de um pretexto inútil. Não tinha direito a ouvi-las, e tu sabes. Mas fica a saber que não me quebro como dantes. Se o tempo me fez alguma coisa, foi erguer a carapaça. Nisso ensinaste-me bem. Por isso até tenho orgulho em dizer que a minha revolta é maior que a minha tristeza. Quem sabe um dia isto passe, mas a ferida desta vez abriu bem fundo, e tão cedo não sara. Assim é. Neste momento apenas me revoltas, não me interessam explicações. A situação, de tão impossivelmente inexplicável, descartou à partida qualquer solução do género. Procuraste sempre que eu chegasse a este ponto, por isso parabéns. Não fazes sentido, e, mesmo que eu próprio tenha tentado sempre negar essa tua faceta, tu pareces querer impô-la. O absurdo das tuas atitudes banham-te o quotidiano. É a tua opção. Resta-me esperar que a ferida sare, mas neste momento não a sinto, não me dói, é um assunto adiado, ignorado. Como tanta coisa na vida, não é? Sabes bem que dificilmente chego a este ponto com as pessoas, por isso acho que sim, deves fazer mais um risco na parede, porque conseguiste despertar em mim mais outra coisa que julgava que não ia acontecer. Um conselho: tem cuidado. Porque eu aguentei tanta coisa pela vida fora que os teus actos não têm sequer a força para me magoar, mas a outros pode acontecer bem pior. Fica a mudez derradeira, absoluta e sepulcral, a estupidez reinante que tanto tempo ameaçou alagar o horizonte. Escolha tua, apenas. Uma obra por ti assinada. Está fora das minhas mãos o que quer que seja, como aliás sempre esteve. Eu não tenho já a força de remar contra a maré e continuar a levar com ondas cada vez maiores e cada vez mais absurdas.
E fechou os olhos, entregue ao baque solitário da escuridão. Era real.