quarta-feira, julho 27, 2005

Grita. Abafado, sempre, permanentemente, sob as cobertas, sob até um coração frio, o grito, ameaçando destruir tudo, ameaçando sair de dentro e inundar, o grito, no limiar da loucura, no limiar de tudo o que é possível e dentro já e sempre do que é impossível, o grito, a explosão debaixo das camadas, debaixo de outros gritos, centenas de outros, todos mitigados, todos abafados, todos retidos lá dentro, aos pulos desde tempos imemoriais, a ferirem, a queimarem, aos poucos, aos poucos, pé ante pé, grão a grão, o grito, e a explosão que nele corre, e o mundo que já era nulo a ruir de novo, tudo o que já tinha chegado ao zero a acabar ainda, e a gritar, a arder, a fustigar por dentro, sempre por dentro, em loop contínuo, em permanência o mesmo disco riscado, e aquela carapaça que resiste, e aquele sorriso que (não pode ser) ainda subsiste. Apesar de ser um espectro, apesar de se sentir como um fantasma, apesar de ser nulo e de sabê-l0, apesar de nunca ninguém o ter ouvido antes, grita.

sábado, julho 23, 2005

Gato na montra da loja, patas contra o vidro, adorável, pequenino, indefeso, irresistível. Está acompanhado de outros tantos iguais a ele, no entanto aquele gato é "especial". É, sem dúvida. É "diferente". Mas fica na montra. Os outros vão sendo levados, entre sorrisos, abraços, crianças pequenas que olham para os pais,comovidas, sonhadoras, e partem felizes. Passam-se tempos, de certeza que será o próximo, de certeza... vai arranjando companheiros, vai conhecendo outros, mais novos do que ele, vai fazendo amizades com os que vão passando, enquanto vê as pessoas a passarem do outro lado da vitrine. Mas persiste, e não percebe... se soubesse articular a palavra "porquê", mas não sabe falar sequer. E fica, fica, sabe de cor os cantos à pequena e tacanha casa. Com ele, este tempo todo, a vontade de perguntar, a vontade de se virar para alguém e querer um fim, uma resolução, mas nem se saber como...

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Fernando Pessoa


Foto de José Diogo Soveral

quinta-feira, julho 21, 2005

Lembrava-se de quando julgava que o mundo era uma aventura inesgotável e de querer saber até que distância é que iam as paredes do universo. Fora assim sempre. Mas todos os dias acorda e dava com o mesmo vagar, a mesma desilusão, e ficava à deriva, sempre à deriva, como sempre quis ficar. Mas este vaguear não era um sinónimo de liberdade. Era um afastamento. Como quando via um quadro e não acreditava nas pinceladas que via, como se a imagem abstracta que tivesse na cabeça fosse mais real do que a realidade. Aborrecia-lhe tantas coisas, perdia tempo com tantas outras, mas a sua maior perda era avaliar tudo, e acabar por se desiludir, porque tudo lhe parecia de cera. Tudo lhe parecia falso. Custava-lhe tanto não querer acreditar naquele sorriso, mas a vida pô-lo de pé atrás com tudo, e impediu-o (desde há tempos que lhe pareciam eternos) de acreditar pura e simplesmente. As armadilhas em que tropeçara, voltara a tropeçar e de novo caíra, fizeram-no capitular. Secou e tornou-se um ente neutro, em que desta vez a pose granítica era um dado adquirido, e a felicidade, antes de surgir, era alvo de mil e uma questões, as mesmas que ele não colocara antes de cair nos abismos dos quais se queria esquivar.

Só há duas ou três histórias na vida de um ser humano, e repetem-se tão cruelmente como se nunca tivessem acontecido.

Willa Cather

quarta-feira, julho 13, 2005

Vivo de noite. Sou a penumbra. À minha volta a luz do dia é irónica, porque o dia não sou eu. É outro. Gosto da noite. Gosto de abrir os olhos e ainda ser escuro. E de me mover em silêncio, táctil, instintivo, em busca de algo que os outros não procuram e que eu não quero achar. Quem esteja perto não me sente quase, porque passo depressa demais, mas é assim que eu quero que seja. Não quero encontrar, apenas procurar, e refutar todos os calhamaços que pressupôem que uma demanda tem sempre um objectivo. Encontrar o quê? E para quê, se o que de mim sai é silêncio? Talvez me dêem a mão no escuro, e não seja preciso dizer mais nada...

domingo, julho 03, 2005

Subiu a montanha, respirou o ar fundo, absorveu a vista deslumbrante e deixou-se levar pela simplicidade do momento. Passar os últimos tempos a subir, sem parar, sem reflectir, sem querer olhar para o chão lá em baixo, a subir sempre, para apenas parar quando o seu objectivo ficasse cumprido. Mas quando começou a pensar de forma mais ponderada quais os limites e quais as formas da montanha que subira, o espanto preencheu-o. Estava sentado no rebordo de um gigantesco ponto de interrogação. E ainda faltava tanto para conseguir perceber que a sua luta, o seu esforço, tinham sido apenas um átomo, dentro das dimensões desmesuradas daquele sítio...
Foto de Fernando Penim Redondo

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