quinta-feira, setembro 30, 2004



A vida assemelha-se a um carrossel que esperou muito tempo para começar a andar. Estou sentado dentro dele, a aguentar a força que me tenta cuspir para fora, mas agarro-me com unhas e dentes, porque sei que sou mais forte do que ele, sei que se agarrar com cada vez mais força é o carrossel que se vai desprender dos eixos, libertar-se do chão e levantar vôo no meio dos seus rodopios... porque tudo o que anda às voltas para sempre acaba por se libertar, de uma forma ou outra...

segunda-feira, setembro 27, 2004



É tarde, no rápido serpentear das horas, entre duas garfadas de raios acutilantes de sol entrando pela vista, no despertar forçado que se impõe. É tarde, o movimento aumenta no espaço, a vida acelera como o coração quando há anos nos apaixonámos pela primeira vez, a máquina ganha balanço. É tarde, desejos de sorrisos preenchem a baça película que nos envolve, o corpo sai e, sobre rodas, desliza em direcção ao objectivo. Curioso, como afinal ainda é tão cedo.

terça-feira, setembro 21, 2004


Anything for granted - don't take it

Astuto e infalível, este animal que caça move-se em silêncio pela escuridão. Nunca falhou, e mesmo quando se cruzou com os próprios erros, arranjou sempre uma desculpa. Esta noite saiu em força, para encobrir o próprio medo que tem do escuro. Prefere fingir a coragem e a astúcia a ter de se confrontar com o interior movediço que o forma. Passo a passo, desloca-se por um breu que não consegue descortinar. Então vê uma forma lá ao fundo. Presume-a tímida e assustada, e põe as garras de fora. Ela está de costas. Vai ser presa fácil. Mas quando se lança eis que a presa se vira e diz "gotcha!". Realmente uma surpresa: um caçador idêntico a si sorri-lhe e pisca-lhe o olho. Como se um espelho cristalino se tivesse interposto entre aquelas duas criaturas no meio das trevas esverdeadas da selva. Estaca e fica sem reacção, este protagonista, ainda há pouco um predador temível, agora apenas e só dúvidas. Antes de prosseguir e deixá-lo de novo a sós consigo, o visitante seu igual diz-lhe apenas "boa caçada, boa sorte para a próxima".

Os sonhos andavam a ficar cada vez mais estranhos...


"The world I see -- you're stalking elk through the damp canyon forests around the ruins of Rockefeller Center. You wear leather clothes that will last you the rest of your life. You climb the wrist-thick vines that wrap the Sears Tower. You see tiny figures pounding corn and laying strips of venis on the empty car pool lane of the ruins of a super highway."

Tyler Durden

domingo, setembro 19, 2004



Só, abandonada no seu quarto escuro, esquecia o seu passado mais imediato. Uma luz definida e rara contornava as arestas dos poucos elementos à sua volta. Naquele momento, o seu silêncio seria eterno. Não queria dar satisfações a ninguém. Era de dia mas ela rodeou-se de trevas, entregue a uma tela ainda branca, tentando a todo o custo pôr o seu espírito longe das quatro paredes onde a sua vida se confinava. Durante horas estacou, de olhos fixos na alvura do quadro ainda inexistente, perscrutando as suas memórias mais coloridas. Mas a realidade era outra. Os tons dentro de si eram já feitos de carvão. Então, no negrume intocado daquela noite artificial, brotou uma figura, lenta, sub-reptícia, movendo-se em silêncio e deslocando-se sem volume. Soprou-lhe ao ouvido palavras que não ouvia há muito. E a sua vivência monocromática transformou-se de súbito numa fábula de criança que pedala pelo campo de braços estendidos ao vento. Nunca chegou a saber quem lhe disse aquelas palavras. E decidiu nunca mais querer descobrir.

quinta-feira, setembro 16, 2004



No meio do turbilhão de imagens, deslocações, calor e responsabilidade, uma benvinda pausa. Desço para o almoço e o café, com a pressa a embalar-me os movimentos, procurando, já nas coisas mais triviais, fazer render o tempo. Tinha saudades desta vida, e, sem aviso, ela voltou em toda a sua força. A todo o momento, o telefone toca com chamadas de todo o mundo, é preciso enviar faxes, escrever e-mails, inventariar documentos, resolver problemas... é esta a vida, um pestanejar contínuo, uma sucessão de movimentos rápidos e compassados, a necessidade de manter a mente limpa e atenta.

Mas, ao sair do prédio, cruzo-me com um homem já idoso de óculos. Calculo que seja porteiro, ou marido da porteira. A sua casa encontra-se muitas vezes de porta entreaberta, e ele ainda mais vezes se mantém de pé à entrada, imóvel, olhos fixos no vazio. O vazio de uma vida que já passou, e que chegou a um local cuja única saída ninguém deseja. Permanece à porta vinte minutos depois, quando entro de novo a passos largos. E reflicto, já dentro do elevador, no modo como cinco andares podem fazer tanta diferença. A cabina pára. Saio e bato à porta do apartamento transformado em escritório. Regresso, por fim.

quarta-feira, setembro 15, 2004

Manhã. Sem grande surpresa, o dia ergueu-se como qualquer aurora de Setembro. Os seus olhos entreabriram-se, pesados, resquícios de sonhos intermináveis que lhe encheram a cabeça de personagens que já não conhece. Acordou cedo, apesar de tudo. Algo dentro dele sempre o tornou demasiado pontual, adiantado mesmo. Senta-se ao computador, e percorre em alguns minutos a história da sua vida recente, debitada em palavras electrónicas. Olha lá para fora. Sente-se fraco. Mas ainda não ergueu a capa, ele é ainda só coração, sem tudo o que ele leva à volta. A música que o rodeia é atípica para um despertar, mas há muito que deixou de rotular as peças do quotidiano. O sibilante tremelicar de centenas de instrumentos de corda invade-o. Sente-se cada vez mais vulnerável, mais flutuante. Fecha os olhos, e dá por si a vislumbrar uma planície longínqua, a dezenas de quilómetros de altitude. E quando abre os olhos nada mais é igual. À sua volta o dia continua pálido, os carros continuam a circular. Abre a janela. Os seus músculos imobilizam-se durante alguns segundos. E os seus pés não assentam mais no chão. Com a leveza de um acento que flutue sobre uma qualquer vogal, começa a abandonar o solo, e em breve não é mais do que uma terna memória para uns, invisível sentimento para outros.

quarta-feira, setembro 08, 2004

Do negro ao branco,
Do denso ao raro,
Do ofuscante ao invisível,
Do tudo ao nada
E do fim ao novo início,

vai uma linha tão imprevisível como as trajectórias que o mundo percorre quando julgamos que ele está simplesmente a girar.

E agora, como essa esfera que nos coloca a todos em comum, sinto-me como uma bola de bilhar derradeira em fim de jogo, rolando lentamente, sem saber se são as redes profundas que me esperam, ou a viciante esquina almofadada que me arremessa de novo para o centro da mesa...

terça-feira, setembro 07, 2004

Boards of Canada - Everything You Do Is a Balloon

Baixou ligeiramente o pulso, sentada naquela poltrona de veludo vermelho, e a agulha pousou no disco, com aquele som granulado tão característico. Um foco único ilumina-a por cima. Não mexe um músculo além do absolutamente necessário. O som distante de um instrumento envelhecido debita então sons reminiscentes de passados de décadas. As luzes descem. Ondas de corpos azuis saem do altifalante curvado do gramofone e rodeiam o espaço, desprovido de qualquer coisa mais, além deste estranho e idoso veículo de ritmos e notas, que rodopia incessante. Um ritmo certeiro sincroniza o coração dele, o corpo solitário de pé no centro da sala, exposto ao seu olhar atento. A frase musical começa, rematada por uma outra, tão leve como o sopro de um olhar. Ele tem medo, mas ela sabe que ele não quer sair dali. As pautas inexistentes onde os sons evoluem preenchem gradualmente os espaços inter-sinápticos onde as ideias lhe escorrem, e desviam o seu raciocínio de qualquer outra coisa que não a celebração de cores invisíveis onde flutua já, cada vez mais longe do chão. Não controla os seus movimentos e sobe cada vez mais. A última coisa que dela vê são os olhos. Preso ao seu pulso, levando-o para longe, apenas o veículo tão frágil que ela criou, e que o faz agora viajar por cima da sua própria realidade.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Sigo o fio, meticuloso, viciante. Seguro-o com a mão, e vou andando, deixando-o correr dentro dela. Procuro vislumbrar cada pequena inflexão de cor, cada curva, mas é sempre o mesmo, igual, sem falhas, sem desfiar um milímetro que seja. Vou curvado, com os olhos fixos nessa pureza hipnotizante. Então páro, e olho em frente. Um novelo gigantesco assimila-o, a sua pequenez delgada perde-se dentro de um amontoado assustador. Será aquele novelo o destino do fio? Será uma montanha de nós o verdadeiro final para ele? Ou terei sido eu que andei a fazer o percurso ao contrário? Talvez de uma imensidão de escolhas saia um caminho, definido, limpo, que tenha estado este tempo todo mesmo atrás de mim. Então viro-me, lentamente. E os meus olhos fixam aquilo que eu já esperava encontrar.

quarta-feira, setembro 01, 2004



É da textura das ilusões, o material que forma aquele homem além, que segue lentamente pela rua. Move-se sem som, em câmara lenta, e passaria despercebido mesmo no meio de um campo de margaridas. Podia ser qualquer um. Os seus olhos deambulam pelas coisas triviais. Mas a sua alma retém apenas um par de olhos. Viaja de carro, através de uma cidade adormecida pelo tempo, iluminada de forma intermitente. Um sorriso tímido e esbatido coloca-se à frente de tudo o que vê. O seu refúgio encontra-o já tarde. Senta-se no local do costume, e liga o computador. Letras e números transformam-se no seu sustento, no seu sentido. Do outro lado do ecrã, ela espera-o. Pergunta-lhe porque é que ele demorou tanto tempo, e a resposta vem sem uma única palavra. E, depois de tanto tempo de inquietude, acaba por relaxar. Ele chegou. Estica os braços sobre o divã, e observa as suas mãos maquinais tocando nas teclas, desenhando a sua existência, o seu mundo, os seus cabelos, as suas roupas. Observa como ele lhe oferece desgostos para em seguida apagar tudo e transformá-los em alegrias. Mas ele e só ele quem lhe dá vida. Passam-se horas. Os traços tão finos que a desenhavam tornam-se um pouco mais nítidos. Despede-se dele com um beijo silencioso. Ele não sorri sequer. Fica triste por não lhe poder falar, por ser apenas personagem de um pequeno esboço, feito de palavras soltas. Gostava de estar ali, naquele mundo onde ele vive, onde tudo é tão real, tão palpável. Gostava de poder tocar nas coisas que para ele são tão comuns, tão triviais. Mas sabe que tem de ser paciente. Ele agora dorme. Quem sabe amanhã ele crie de novo para ela um mundo assim, onde ela possa viver para sempre...

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