terça-feira, novembro 23, 2004

No mundo em que vivo, as sensações deixaram de existir. Compram-se. O amor, o arrepio, o nervosismo, a adrenalina e o medo deram lugar a locais desprovidos de calor humano. As planícies que outrora foram castelos de areia, pontes de nuvens, tornaram-se colossos de aço. O vidro reflecte em lugar da mente humana. Não há mais equipas no mundo em que vivo. Sou mais um. Apesar de tudo o que me irrita e mói, sou apenas mais um. As relações humanas são memórias de alguns e o presente invisível de quem já não se recorda. Acordo numa cápsula, e visto-me sem mexer um músculo. É tudo automático no lugar onde vivo. Saio, e a casa (estranho pretexto para uma) tranca-se a um comando da minha voz. São as últimas palavras que profiro enquanto é dia, e as outras, as outras não sei quais são. Dirijo-me ao emprego, encostado aos milhares de pessoas naquela ponte aérea, e demoro cinco minutos a atravessar a cidade. Sou só mais um. Passo o dia de pé, rodeado de números que tenho de pôr em ordem. Volta e meia o meu olhar desvia-se da miríade de algarismos, e repara nas fotos, projectadas num pequeno ecrã que pendurei de lado no meu cubículo, fotos que vão mudando e mostram as pessoas com quem me cruzei e que já não conheço. Há espaço para as memórias, mesmo quando me tentam roubá-las. As horas passam, uma série de de cilindros massajam-me as pernas antes de sair. Só para poder andar e não sentir o peso do meu próprio dia. Não falo, nem quando sou quase trespassado por uma comprida limusine que fura a multidão a uma velocidade estonteante. O dia começa agora. No mundo em que vivo, a televisão passou de absoluta a obsoleta sem ninguém ter notado. Sento-me na poltrona, repouso no quarto silencioso e rodeiam-me, um por um, uma série de aparelhos minúsculos que emitem sons de referência. Fecho os olhos e duas lentes que a eles se pespegam emitem imagens de teste. O dia começa agora.

Abro de novo os olhos. À volta vejo a imponência sem fim de uma cordilheira. Estou só, num cume de neve. Atiro-me ao vazio, sobre os meus esquis e acelero, sem medo. O medo não entra nesta parte. Cruzo-me com árvores que assobiam à minha passagem. Salto a uma altura de vários metros quando cruzo a mais pequena lomba. Cada vez mais rápido. Um lanço da montanha termina, e mergulho no abismo. Um gigantesco número 2 surge, acompanhado por um som do tamanho das montanhas. Agora é mais difícil. Acelero ainda mais. Agora a montanha é mais a pique. Há mais árvores, e esquivo-me à justa para não embater de frente contra elas. Estou a ficar mais ágil, mas o medo agora já é real. Vôo entre rochas afiadas, e sinto um aperto no estômago. Quase tropeço num tronco atravessado no meu caminho. Saltei mesmo à justa. Ao fundo, o algarismo está a ficar cada vez maior. Atravesso o limiar da velocidade. Bónus de tempo. Nível 3. Uma fábrica abandonada, coberta de neve. Esquio dentro de um edifício antigo. Páro, sem mexer um músculo. Uma voz ri-se e ribomba pela divisão. A fábrica acorda de súbito. Explosões cercam-me. Desvio-me por pouco de pilares que se desmoronam. Olho para trás. Um gigante escuro de olhos vermelhos tenta-me apanhar, mas eu vou ser mais rápido do que ele. Eu vou conseguir lá chegar. Há uma luz lá ao fundo. Não noto, porém a parede que se atravessa sem eu ver. Game Over.

Adormeço. Antes de fechar os olhos, penso se esta não-vida de um sentir simulado e de visões vácuas do que é realmente um sentimento se pode designar de vida... mas é uma questão que já não pertence ao meu mundo.

domingo, novembro 21, 2004

Sono. Os olhos pesados. O dia longo, o lento mover da engrenagem em direcção ao quotidiano. O franzir, o pestanejar para poder ver as letras, para se perceber o que se escreve. Visito a espaços os escritos, rebobino-me também, perco-me entre palavras antigas, reflexos de um eu recente e ao mesmo tempo distante. Quero aproveitar o que ainda não há, e celebrar o que ainda não tenho. Quero acreditar, acreditar no sorriso, na pena leve de uma vida que se escolhe, da dependência de um esquema para sobreviver. Não... não me apetece.

Quero saber que há ainda soslaios de amanhã que nos arrasam como castelos de fósforos no centro da tempestade, e que afectam tudo o que faremos até a eles conseguirmos chegar.

sábado, novembro 13, 2004

Ébrio depois de uma noite de recuperado calor humano, e um olhar distante e inexistente... fui feliz hoje, aquela felicidade que passa devagar, que nos faz sorrir ao relembrar o passado... andei, errante, pelas ruas da cidade, entre amigos, entre copos, entre sorrisos... e apesar do eco já distante que ainda me assola, sorrio ainda. Por saber que há noites assim.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Não costumo fazer publicidade, mas não consigo fazer passar ao lado tamanha dose de nostalgia... Finalmente, serviço público de televisão!

terça-feira, novembro 09, 2004

De volta, ele estava de volta, atravessou a soleira da porta sem razões nenhumas para ter estado longe, sem razões nenhumas para voltar. Trazia nos bolsos a surdina dos gritos de desespero do exílio sem explicação, tapados por camadas de papéis inúteis, que acumulou sem propósito. Sentou-se na poltrona por razão nenhuma, descalçou os sapatos sem sentir comodidade nisso, ligou a televisão num canal de chuva, o seu programa favorito. Olhou-se ao espelho, que flutuava à sua frente, e não pensou sequer porque é que um espelho poderia flutuar. Viu um homem amachucado, como os papéis que levava no bolso, todo ele um farrapo. Sem querer pensar porquê, ergueu ao alto o copo de água que o embriagaria, mesmo se isso não fizesse sentido, e brindou a si próprio. Bebeu enquanto abstraía a sua mente das explicações e deixou-se flutuar no compartimento que cada vez mais se alagava de estupidez, tudo porque naquele momento as razões não existiam, apenas os factos, e as atitudes impediam a explicação, apenas o absurdo. Boiou, de barriga para cima, enquanto o espaço à sua volta se enchia cada vez mais, a sua cabeça cada vez mais alta, cada vez mais fugidia. Queria deixar-se flutuar até bater com os olhos naquele tecto em trompe l'oeil, apenas mais uma ilusão de que não havia fim para onde ele podia ascender... fechou os olhos e quedou-se, esperando o mergulho inevitável. Quando sentiu o que o último cabelo estava submerso, limitou-se a encolher os ombros.
As desculpas ignoradas e os gritos abafados por camadas de receio tinham-lhe minado o presente. Pensou como seria se nunca tivesse falado sequer... um pequeno sorriso do mundo que podia ter existido tornou a sua lágrima solitária apenas uma gota a gritar entre milhões de outras, imperceptível no azul onde se mantinha imóvel. Restou-lhe estender a mão, e esperar que alguém lhe tocasse...

quarta-feira, novembro 03, 2004

- Então... adeus. Até breve.

- É assim que acaba?

- Que queres dizer?

- Viras-me costas como de costume?

- Desculpa-me mas tenho medo do que possa acontecer.

- O mundo já é um lugar assustador para quem tem medo. Porque é que seria diferente?

- Porque tu não és como o mundo.

- Mas tu tens medo de mim.

Free Blog Counter