sexta-feira, março 24, 2006

Ergue-se em câmara lenta do leito onde dormia. Desperta de um sonho demasiado real, mas tão parecido com todas as memórias que se habituou a descartar como passados imediatos. Sente-se a latejar, todo o peito lhe treme, ainda no susto, mas não se lembra de ter sonhado com absolutamente nada que o assustasse. Ao invés, lembra-se de percorrer campos violeta, céus laranja e sentimentos profundos da cor do mar. Lembra-se de pairar a um centímetro do chão, como se pudesse morrer sem sentir que deixaria alguma coisa por fazer. Lembra-se de repente de se sentir completo mesmo desconhecendo porquê, talvez por estar ali, a partilhar consigo mesmo aquela paz. Mas na boca ainda um travo de saudade. Percebe que não estava só. Rebobina a custo cada vez mais momentos, que parecem surgir sequencialmente, como respeitando uma ordem própria, o campo transforma-se gradualmente na praia recorrente em vários sonhos seus, a praia que não existe e que ele guardou dentro do coração, mesmo se já não se lembrasse dela. As ondas flutuam sem rebentação. Há um silêncio indescritível. Uma mão que lhe toca na face. Olhos que se escondem por trás de um sorriso quando ele tenta percebê-los. A cara de alguém que nunca conheceu mas que sabe amar, para além de tudo o que o mundo lhe atire e dê de presente. Toca-lhe no ombro com o dedo indicador e percorre lentamente as suas costas macias e encantadas. Foi então que acordou. Precisamente no momento em que o seu coração parecia sorrir. Agora permanecia sentado, fitando a escuridão, a pensar na luz, na música que não tocava, naquele amor tão belo quanto impossível. Feito apenas da textura dos sonhos. E então a mão dela toca-lhe ao de leve na face e pergunta-lhe docemente se teve um pesadelo. Sem virar a cara, ele percorre com a mão as suas costas nuas, o seu cabelo, a boca que sorri ao de leve. Vira-se para saber se aqueles olhos também se vão esconder.

Foi então que acordei. Justamente quando o meu coração parecia sorrir.


Foto de Rui Gomes

quarta-feira, março 22, 2006

Dois anos de blog. Nunca tive jeito para discursos, mas o jeito para discursos é algo que se adquire, é algo que se atinge, é algo que nos brota de dentro e não que se provoca. Havia tanta coisa para dizer, mas prefiro que essas palavras permaneçam cá dentro. Já muita coisa foi dita. A todos os que me lêem, a todos os que me compreendem, em silêncio ou talvez não, o meu eterno abraço.

segunda-feira, março 20, 2006

30 de Abril de 2004

Acordo, rodeado de um estertor irónico a esvoaçar sobre o espelho da minha mente. Atrás de mim, os pensamentos, que descarto num rasgo de absurdo, riem-se do eu que aparece no outro lado dos sonhos.

Pairo outrora, sorrindo ao primeiro raio de luz do sol que me fita. Em mim, o vazio devastador de um peito em busca da sua outra metade, o quotidiano de eu próprio, perscrutando os pequenos surrealismos da vida, que me ferem mesmo quando não os quero ver. E uma luz sobre a minha janela, uma imagem sem matéria, impossível de ver no todo, apenas ao pormenor. E eu voo em direcção a ela, e procuro no seu coração um sentido no dourado céu de chumbo que me rodeia, mesmo quando sou o único que o vejo. Ao meu lado, vejo-me a deixar para trás os passados que julgo deixarem-me em paz. Mas não chego a ver a parede em que me esmigalho, e quando regresso à superfície, todos os pedaços de memória que por mim passaram, incorporam-me de novo e partem comigo em viagem.

Durante um tempo que parece uma eternidade, lambo todas as minhas feridas, e percorro a estrada branca que as meus pés, infinita, se estende. Por vezes, algumas memórias da luz que posou na minha janela, e da minha queda em direcção a uma armadilha que julgava ser a voz dos anjos.



A tristeza infinita de remexer o passado e perceber que está tudo na mesma... como uma noite de Inverno que dura há demasiados anos.

sábado, março 18, 2006

Sim, quero expandir-me, esticar as margens de tudo o que disseram ser possível e chegar até ao outro lado do que ninguém ousa conhecer Quero correr, correr e correr ainda mais depressa quando me dizem que não devia viver tudo tão rápido Quero aproveitar ao máximo todo o poder e toda a beleza de tudo o que é poderoso e belo Quero saber a beleza e a liberdade infinitas de poder fechar os olhos mesmo quando os tenho abertos e, com um clique, materializar por palavras todas as coisas mais ousadas e magníficas que na imaginação puderem correr Quero planar por continentes, deitado no sítio onde tantas horas passo, sem nunca perder o controlo, sem nunca perder a noção de que cada segundo é real, e deve ser acarinhado como o último Quero pegar abanar e acordar aqueles que escreveram "carpe diem" num post-it que entretanto se descolou e caiu para trás da secretária Quero repetir a ideologia e a fotografia de abrir os braços ao pôr do sol até alguém compreender que não é um mero lugar-comum sem efeito, mas sim uma opção de vida Quero levar quem quiser ir comigo e dar quarenta mil voltas ao mundo sem pensar no que há de vir sem perder demasiado tempo no que já passou a aproveitar só e apenas a única coisa que temos como certo - o momento presente Quero ter a noção de que há tanto pela frente Quero voar com quem souber que a beleza das coisas não se exprime com palavras gestos ou aparências Quero viver para além do real e ter o poder de tirar os pés da terra sem perder o controlo Quero que o tempo dure para sempre Quero quem não precise de me dizer nada para que eu saiba que está tudo bem Quero alguém que não conheço Quero mil desconhecidos à minha frente e envolvê-los no suave abraço da criação Quero o mundo e o que há por trás dele Quero saber que para sempre vou querer qualquer coisa

Quero alguém que venha comigo e que descubra que, apesar de tudo, não se pode querer nada sozinho.


Foto de Alécio César

terça-feira, março 14, 2006

Arcade Fire - In the Backseat

i like the peace

in the backseat
i don't have to drive
i don't have to speak
i can watch the countryside
and i can fall asleep

my family trees
losing all its leaves
crashing towards the driver's seat
the lightning bolt had enough heat
to melt the street beneath your feet

alice died
in the night
i've been learning to drive
my whole life
my whole life
i've been learning



Sempre. Sempre que por dentro das suas entranhas revoltas uma onda do tamanho de um continente tombava com a força de um qualquer apocalipse ele vinha cá ter e passava aqui horas, a contar a tímida história do homem que vivia atrás de um muro de quarenta metros e que nele desenhou uma janela com um jardim para fingir que o muro não estava lá ou a do outro que vivia no fundo do poço e que desatou a escavar porque percebeu que não havia mais nada para fazer a não ser tentar ir mais fundo, ou a daquela que enviava mensagens a ela própria para se sentir desejada, ou a do tipo que flutuava como uma nuvem ou também a do astronauta suicida que viu lá do longe a terra a girar ao sabor de uma dança cósmica, e a dissertação interminável sobre o tempo, rodopiante, explosivo e sempre esmagador, ou o oco e nauseante rebolar sobre a solidão, a repetição, a repetição... escrevia-as sem ordem, sem público, sem propósito, sem rumo, porque sabia e sentia sempre - sempre - mesmo que por dentro o seu peito rebentasse como um holocausto de si para si próprio, mesmo que no seu céu estoirasse a trovoada na ponta dos seus dedos, mesmo que o vento o ameaçasse fazer voar até ao continente vizinho e para longe de casa, mesmo que fosse apanhado no centro de uma viragem de séculos, mesmo que tudo ruísse e tudo o que ele conhecesse fosse reduzido a memórias e cinzas, mesmo que o horizonte se tornasse monocromático e os seus olhos encarniçassem viciosamente em busca de uma resposta para além do seu local, saberia - sabê-la-ia eternamente - a sua própria liberdade...


Foto de J. Pessoa

domingo, março 12, 2006

Voa (não sabia o que isto era)
Voa (que lindo)
Voa (não quero parar)
Voa (sim, digam-me que é real)
Voa (porque é que só agora sei o que é voar)

E perde o ar

Voou demasiado
Materializa-se de súbito sobre o chão
Voou demasiado
As suas asas aproximaram-se tanto do sol
Demasiado
Fecha os olhos
Deixa para trás as perguntas
Evaporam-se as dúvidas
Deixa ficar o que sabe que sente
Tenta esquecer o medo
Fica à espera que a realidade o apanhe outra vez
E faz de conta que ainda voa...


Foto de Paulo Pampolin

quarta-feira, março 08, 2006

Partir para bem longe sem sair do mesmo sítio subir até onde não há ar e voltar para dizer que lá estive fazer o pino em cima de uma nuvem e rodopiar à velocidade da luz para as profundezas da terra sem relógio para além dos limites do possível ver nascer e anoitecer os dias sem que o tempo passe atravessar um oceano por mero capricho tirar uma fotografia à pessoa que vive no lugar mais distante da minha casa ser tornar a ser respirar até sentir o cheiro da poeira das estrelas ouvir a mesma nota de violoncelo por um dia inteiro esticar as mãos sobre a falésia e tocar nas ondas ouvir as histórias que a pessoa mais velha do mundo tem dentro do coração cantar a plenos pulmões no fundo do mar aprender a dançar sobre uma corda suspensa entre as duas montanhas mais altas do mundo cair e soltar uma gargalhada que se prolonga e se transforma em trovoada no deserto mandar saltos para sentir o corpo latejar virar costas a tudo o que não faça o mínimo sentido aceitar para nós apenas aquilo que conseguimos sentir como duas mãos que tocam as nossas quando não há mais ninguém à volta e dois olhos que sorriem e se desviam com tanto encanto quando na realidade era possível fitá-los para sempre...


Foto de João Gomes Mota


sexta-feira, março 03, 2006

Não está frio
Não está gélido
Não sabe como está
Está escondido
Lá bem no fundo
Por trás das grades imaculadas de uma cela de gelo
Sem querer sequer sair
Fica ali
É aquele o espaço que conhece
Tem medo do mundo à volta
E agora sente-se bem
Está tudo na mesma
Mas há algo que mudou
Há um brilho nas paredes gastas
Há outro som no bater maquinal do coração
Há um sorriso lá bem ao fundo
Naquele recanto de horizonte que ele vê da janela
Quando se estica o suficiente para espreitar

Sabe que um dia há de fugir
Mas não hoje
Mas não hoje

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