Ergue-se em câmara lenta do leito onde dormia. Desperta de um sonho demasiado real, mas tão parecido com todas as memórias que se habituou a descartar como passados imediatos. Sente-se a latejar, todo o peito lhe treme, ainda no susto, mas não se lembra de ter sonhado com absolutamente nada que o assustasse. Ao invés, lembra-se de percorrer campos violeta, céus laranja e sentimentos profundos da cor do mar. Lembra-se de pairar a um centímetro do chão, como se pudesse morrer sem sentir que deixaria alguma coisa por fazer. Lembra-se de repente de se sentir completo mesmo desconhecendo porquê, talvez por estar ali, a partilhar consigo mesmo aquela paz. Mas na boca ainda um travo de saudade. Percebe que não estava só. Rebobina a custo cada vez mais momentos, que parecem surgir sequencialmente, como respeitando uma ordem própria, o campo transforma-se gradualmente na praia recorrente em vários sonhos seus, a praia que não existe e que ele guardou dentro do coração, mesmo se já não se lembrasse dela. As ondas flutuam sem rebentação. Há um silêncio indescritível. Uma mão que lhe toca na face. Olhos que se escondem por trás de um sorriso quando ele tenta percebê-los. A cara de alguém que nunca conheceu mas que sabe amar, para além de tudo o que o mundo lhe atire e dê de presente. Toca-lhe no ombro com o dedo indicador e percorre lentamente as suas costas macias e encantadas. Foi então que acordou. Precisamente no momento em que o seu coração parecia sorrir. Agora permanecia sentado, fitando a escuridão, a pensar na luz, na música que não tocava, naquele amor tão belo quanto impossível. Feito apenas da textura dos sonhos. E então a mão dela toca-lhe ao de leve na face e pergunta-lhe docemente se teve um pesadelo. Sem virar a cara, ele percorre com a mão as suas costas nuas, o seu cabelo, a boca que sorri ao de leve. Vira-se para saber se aqueles olhos também se vão esconder.
Foi então que acordei. Justamente quando o meu coração parecia sorrir.

Foto de Rui Gomes
Foi então que acordei. Justamente quando o meu coração parecia sorrir.

Foto de Rui Gomes