Foto de Pedro GomesOutro dia, naquele dia quente, seco, desprovido, nú. Seguia pela rua abaixo, com o peso das horas em cima, de todas as horas, de tantas, das memórias. Por cima dele, a centenas de quilómetros de distância, o lixo em órbita e a lembrança das nuvens, que já não existiam. Descia o pavimento íngreme, pensativo, mas ansioso. Esperava-o aquela que era para ele tudo. Estava lá ao fundo, pensando nele também, e parecera-lhe sempre impossível ter encontrado alguém como ela, mas agora era real, e ele não a queria perder. Apetecia-lhe segurá-la, e nunca mais a largar. Apetecia-lhe. Chegou ao edifício. Edifício... agora todos os edifícios eram redomas brancas, alvas, puras, limpas, esterilizadas, impessoais. Lá dentro restava a humanidade. Entrou na câmara de descompressão, e despiu o pesado fato térmico que o protegia de tudo o que era exterior, e finalmente, como se tivesse perdido toneladas, abriu as portas do palácio. Subiu as escadas e ela ali estava, em frente à janela gigantesca, vestida de azul, esperando-o. Não quis dizer uma palavra, mesmo sabendo que não era permitido falar. Olhou pela janela, ao lado dela, e viu uma flor brotar do pavimento. Olhou para ela, incrédulo. Seria real? Olhou para si próprio. Suspirou. Murmurou a palavra de código e todo aquele espaço enorme se reduziu à sua dimensão de sempre: um cubículo de alguns metros, donde uma cama saía da parede. Deitou-se, e lembrou-se dela. Do seu vestido azul. Onde estaria ela agora? Será que ainda existia? Tentou lembrar-se de como era os seus lábios a tocarem nos dela. Era cada vez mais difícil, o tempo pesava, sempre, cada vez mais. Quis tê-la ali. Mas mesmo que tivesse, para quê? No mundo em que vivia era já proibido tocar em quem quer que fosse. Era demasiado perigoso. Por isso, como um recluso, cingiu-se à lembrança.