terça-feira, maio 31, 2005

Foto de Miguel Mealha

Porquê sentir-se seco, desprovido de sentimento, arredado da vida... Apetece quebrar a mesa de vidro com ambos os punhos, rasgar a capa tão impermeável com a faca da vontade, derreter o piso do estabelecido com o ácido do suor. Cada dia que passa, porquê secar cada vez mais. A pele, outrora suave, um árido pretexto para a cor. O cabelo esbranquiçado, quebradiço. Dias, e outros e ainda outros, a não apetecer ouvir música, ver filmes, ler livros, tocar piano, ir à net, responder, falar, suspirar, arrepiar-se, chorar. Desprender-se do real, viver uma alternativa paralela, e pouco interessa mais. Querer outras realidades, querer outras respostas, querer uma saída, mas não se saber se de facto se quer sair, e sair para onde... Esperando, esperando, esperando, esperando, e de repente outra rajada de vento. Intermitente ao tempo de todas as indecisões. Intermitente ao próprio pulsar da vida.

segunda-feira, maio 30, 2005


Foto de Ricardo Fraústo

Começou no fundo de um poço. Era dele, fizeram-no dele, e atiraram-no lá para dentro, há muitos anos já. De início não entendia sequer o que é que estava ali a fazer, mas cedo percebeu que aquele era um lugar a que ele tinha de se habituar. Era um estranho sítio, um buraco profundo em forma de S, onde havia almofadas, luzes, às vezes fantasmagóricos sons ambientes. Naquele lugar, surpreendentemente, ele podia viver. Mas algo faltava. Tentava compreender como havia de sair dali, ao mesmo tempo que as suas costas repousavam no chão acolchoado. Percebeu um dia que, a espaços, alguém lá em cima, à superfície, o fitava com ambos os olhos. Ao longe, mas ele conseguia ver-lhe o olhar. Uma figura feminina, a centenas de metros de distância, cuja face ele conseguia distinguir perfeitamente. Da primeira vez que a viu, tentou agarrar-se com toda a força às paredes, escalá-las. Cedo caiu. Tentou sempre, e nunca conseguia dar o primeiro passo sem voltar ao fundo. Passaram-se anos, e tornou-se cada vez mais ágil a fazê-lo. E quando de novo via alguém lá em cima, conseguia já facilmente movimentar-se pelas paredes acima. Algo que ele não previa fazia-o sempre regressar ao fundo, e era sempre tarde demais para pensar o que falhara daquela vez. Persistia. Persistia sempre. Passava vezes sem conta pelas mesmas rugosidades, movimentava os braços e as pernas numa coreografia meticulosa e decorada, aquela rotina era já demasiado familiar. Até que um dia conseguiu finalmente chegar ao parapeito. A figura à sua frente dava-lhe a mão ainda. Dera-lhe a mão após outro mergulho no abismo, e puxara-o desde o fundo até à superfície. Os seus olhos fecharam-se com a claridade reinante, e impediam-no de ver quem o abraçava daquele maneira. Estava demasiada luz para tantos anos de escuridão. Juntou todas as suas forças e tentou vê-la, percebê-la. No entanto o seu corpo caía já, cada vez mais depressa. O mundo ficava cada vez mais escuro, e segundos depois estava de novo lá em baixo, entre as paredes escritas com milhões de palavras, forradas com memórias verbais que só ele decifrava. Estava de volta ao local onde começara, onde crescera, onde vivera as suas maiores emoções, as suas memórias mais belas. E deitou-se de novo, sarando da mesma e repetida maneira as cicatrizes eternamente abertas. Afinal era àquela alegoria que ele chamava casa. Antes de fechar os olhos pensou porque havia de tentar de novo subir. As forças para o fazer tinham-no abandonado, e ele sentia que desta vez era para sempre. E que agora só alguém lá em cima, alguém que ele talvez ainda nem conhecesse, podia elevar com esforço o seu corpo inerte e devolvê-lo à vida que ele nunca conhecera...

terça-feira, maio 24, 2005

Dirigiu-se à varanda como se estivesse a apagar qualquer cigarro imaginário, e olhou o horizonte. Estava cheio de palavras. Escrevê-las-ia. Mas viu um enorme e etéreo círculo alaranjado despontar entre as gruas e os telhados. E as palavras que tinha evaporaram-se.

Em homenagem ao ritual sonhador e repetido e monótono e desesperado de olhar pela janela, uma foto minha.

domingo, maio 22, 2005

Retirei ambos os olhos e guardei-os para usar mais tarde. Não os queria gastar. Descalcei-me, e levei as mãos à água. Avancei sobre o caminho formado de nenúfares que sustiam o meu peso, e prossegui. O vento misturava no seu mudo sussurro duas notas distintas. De início pensei se o seriam, mas a cada passo que eu dava, mais esse som se transformava, se revelava, se migrava para as copas das árvores, para regressar de imediato ao solo, com outra face, com um sorriso ainda mais misterioso, mais sedutor. Não via nada, apenas escuridão. Não era preciso. Avançava, e a música que me rodeava tinha cada vez mais os contornos etéreos da harmonia, cada vez mais a água e o restolhar das folhas dançavam juntos. Andava, e à minha volta já todos os sonhos e todas as quimeras tinham vindo ao de cima. Sorria para eles, e eles para mim. No fim da canção, o mundo calou-se. Voltei a pôr os meus olhos, e em meu redor a paisagem mais bela, o local mais insólito, o horizonte mais eterno. Mas sobre ele, e para sempre, a mão gélida do silêncio.

Foto de Paulo Leitão

sexta-feira, maio 20, 2005

E a gigantesca agulha que faz tocar o mundo (naquele gira discos que só o solitário (suicida) astronauta das profundezas conseguiu fotografar) saltou. E a música dos dias, sempre tocada na mesma nota, desafinou pela primeira vez em milhões de anos. E, claro, ninguém notou, porque eram todos surdos. Quase todos. Alguns lamentavam este desequilíbrio, outros tentavam omiti-lo. E outros faziam dele a sua forma de vida, passeavam sobre ele, mergulhavam no seu frio, bebiam-no e comiam-no. E ainda havia os que viviam obcecados em serem tudo menos aquilo que os outros eram. E percebiam então que a recompensa dessa idiotice galopante era um vazio inominável... e este homem que decidiu sê-lo, ele tornou-se outro paradoxo, a juntar a todos os outros que engrossavam as fileiras da solidão. Apenas mais um inexplicável eremita, como tantos outros. Apenas outro tolo a olhar ao espelho e a ver tudo menos o reflexo, apenas outro tonto que sente, não pensa. Apenas mais um daqueles que já não sabe o que quer, mas que, como a agulha riscada, repete incessantemente de si para si o seu objectivo, o seu propósito, a sua ilusão.

foto de Rui Palha

segunda-feira, maio 16, 2005

Deitado na cama, a janela escancarada, estou só. Mas não assim tão só.

- Fala-me de ti.
- Que queres saber?
- Prefiro que sejas tu a dizer-mo.
- Olha à tua volta. O que vês?
- Vejo o quarto. Aquela parede branca, aquele quadro com a fotografia a preto e branco, o mobile, a colecção de golfinhos.
- Agora olha para além das paredes. Imagina o que há depois.
- O jardim, o sossego, um som de grilos baixinho, o vento fraco... e...
- E...?
- As estrelas. O mar lá bem ao fundo.
- Acho que não precisamos de dizer mais nada, pois não?

Abro os olhos lentamente, ainda vejo o rasto azul dela se escapa. Quem era? Corro para a janela. Escuridão. Fecho os olhos de novo, tento-me lembrar. Não, não lhe cheguei a ver a cara. Mas eu sei que senti o toque de um beijo.

quarta-feira, maio 11, 2005

Pousava os delicados dedos sobre a toalha da mesa, impecável e branca. Não os ouvia. Sonhava com a vida que deixara do outro lado do oceano. Ouvia-o ao longe, a gargalhar, a sorver brande, a mandar baforadas num charuto caro, e a contemplar de soslaio a sua compleição de fada, perdida, abandonada ao lado da mesa austera onde o jantar tinha findado há um tempo semelhante a uma eternidade. Ele falava, examinando-a ao mesmo tempo com os olhos, avaliando-a, decidindo todavia o seu futuro. Detestava aquele homem que sorria para o seu pai. Imaginava na mão que lhe dava palmadinhas nas costas um punhal curvo, pronto a trespassar o pobre incauto. Odiava-o, e se um dia perdesse a vista, odiaria também o seu cheiro. Aquele homem queria-a, desejava-a, como um animal deseja a fêmea. Não suportava o olhar fixo dele sobre ela, mesmo não o ouvindo, mesmo o ignorando. Pousou os dedos um por um sobre a toalha da mesa, e fingia que à sua frente estava o piano da casa da avózinha, aquele piano com aquele cheiro tão característico. Apenas passado, pensou ela. Agora ela estava do outro lado do mar, prestes a ser prometida pelo seu pobre pai ao homem tão rico que a ia desposar. E que a devorava com o olhar. Teve nojo. Olhou-o pela primeira vez, deliberadamente. Contemplou-o de uma forma tão profunda que passou por cima do medo, do asco, da razão, e da tolerância. Fitou-o, e seguiu fitando-o. E ele acabou por desviar os olhos.

Viro a página. O livro acabava ali. Verifico de novo, incrédulo. Era aquele o final?

quarta-feira, maio 04, 2005



"Feel Good Inc." aos saltos e aos pulos pelas paredes do espaço...

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