
Que escrever hoje, pensou, enquanto se rendia ao isolado batimento do raciocínio. Queria escrever canções mudas, daquelas que se lêem, mas não conseguia. Faltava-lhe a dedicatória. Fechou os olhos e tentou perceber se as palavras vinham. Escuridão. Começava a entrar em desespero, algo dentro de si gritava por uma redenção mas ela não tinha forma verbal, não tinha adjectivo, não tinha linguagem suficiente para que a escolhesse como depositária dos seus cinco minutos de escrita. Abriu o olhar para o brilho baço da sala. E, como por magia, as palavras estavam à sua frente. Quem as teria produzido? O ligeiro sussurrar que sentiu ao lado do seu ouvido? As mãos leves de alguém que não tinha e que quisera ali para o inspirar? Estava completamente só. Mas as palavras estavam lá, disso já não havia dúvida. Decidiu não pensar, e guardar no seu coração a identidade de quem as escrevera, e não pensou sequer se a havia de a querer encontrar. Talvez estivesse ali, atrás dele, talvez tivesse fugido sem um gesto, talvez se tivesse materializado à cabeceira de qualquer outro desinspirado buscador. Não quis virar a cabeça, não quis mexer um músculo. Não havia explicação para o que ali acontecera, mas ainda bem. Naquele momento era cego, frio, imóvel e estático, e o pior de tudo é que se estava a começar a habituar. Quem sabe da próxima, ela aparecesse à sua frente, lhe sorrisse e deixasse que finalmente ele lhe pudesse ver os olhos...